Milagritos

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… que um menino pobre continue a achar bonito estudar e trabalhar.

… que uma senhorinha sorria para mim antes de, juntas, cruzarmos a rua.

… que eu ligue a TV e “Volver”esteja só começando.

… que a enfermeira de olhos dourados ache que eu trabalho com moda, porque me visto “de um jeito especial”.

… que uma dose única de homeopatia faça um velho corpo responder, depois de quatro antibióticos capitularem.

… que Ana, minha nova vizinha, faça uma excelente caipirinha de romã.

… que a Lissa, um ano e meio, óculos cor de rosa e narizinho arrebitado, tenha vindo morar na casa ao lado da nossa.

… que tia Ligia me devolva, 42 anos passados, o caderninho de exercícios que me pediu emprestado, quando ainda era professora primária.

… que meu gato me saúde entusiasmado, todas as manhãs, mal eu saio do quarto.

… que ainda haja gente boa nesta merda de mundo.

… que esta merda de mundo continue a ser tão maravilhoso.

… que a Marina me empreste o “Asterios Polyp” bem no meio desta chuva de meteoros.

… que eu continue encontrando pessoas para amar e ser amada.

… que corações pisoteados tenham conserto e fiquem tão bons novamente.

… que Epicuro ainda me ensine um jeito fácil e sábio de ser feliz.

… que eu tenha descoberto esta deliciosa barrinha de damasco com ameixa.

… que a Jandira tenha aparecido na minha vida só para me indicar seu médico e depois tenha virado sorvete.

… que o Museu Afro-Brasil não cobre entrada e seja tão maravilhoso.

… que o Amos Oz e a Rosa Montero continuem escrevendo.

… que a escola, a igreja e a corporação não tenham embotado a cabeça e o coração de muita gente.

… que ainda haja quem dá uma receita sem negacear o “pulo do gato”.

… que gente muito ocupada se encontre toda semana para ler, conversar e tomar chá, vinho só de vez em quando.

… que um pé de gardênia meio morto renasça e faça questão de me dar de presente duas mirradas flores temporonas.

Um milagrito por dia. Quem sabe dois. Quando muito três. Quatro no máximo. Melhor não abusar, já que não se sabe quantos ainda temos guardados no misterioso saco do destino. Use os seus, porque parece que eles só valem para esta vida. Os da próxima, se houver (e espero que não haja), haverão de ser diferentes.

“O mágico”: a vida que oscila entre graça e melancolia

Quem, como eu, adora rever “Meu tio” e “As férias do Sr. Hulot”, com o comediante francês Jacques Tati, pode agora matar as saudades desse delicioso “clochard” parisiense: discreto, elegante, gentil. Um filme roteirizado e estrelado por ele participa da 34a Mostra Internacional de Cinema de Sampa. Não, não é outra investida no filão espiritualista-new age, pode ficar sossegado. Jacques Tati, o original, já desencarnou faz tempo e, pela falta de graça que campeia por aí, ainda não deve ter reencarnado. O roteiro foi deixado por Tatit e reescrito pelo diretor Sylvain Chomet. Quem protagoniza “O mágico” (L’illusioniste) é, digamos, um avatar do querido Monsieur Hulot. O charme, a postura, o perfil, a economia verbal e o constrangimento atrapalhado estão todos lá, pode conferir. Chomet, que já tinha agradado os fãs de desenhos animados esquisitos (meu caso) com o divertido e sombrio “As bicicletas de Belleville”, agora assina essa delicada animação sobre a decadência de um mágico de teatro de revista, que tenta sobreviver com seu espetáculo naïve em tempos de roqueiros convulsivos e fãs histéricas (como você vai perceber pelos detalhes, o filme se passa no início dos anos 1960). Na companhia de um coelho branco obeso e agressivo, o sr. Tatischell apresenta-se em pulgueiros parisienses para meia dúzia de gatos pingados. Dispensado pelo dono do teatro, ele resolve cruzar o Canal da Mancha em busca de novas oportunidades para seu show. No pub de uma aldeia escocesa onde descola um trampo, ele faz seus truques mambembes para Alice, a faxineira adolescente. Graças a alguns encantadores equívocos, ele se tornará, aos olhos dela, uma espécie de “mago-padrinho” com poderes extraordinários, capaz de transformar botinas velhas em sapatinhos vermelhos, entre outras maravilhas. Por isso, ela o segue quando ele parte para Edimburgo, em busca de trabalho. E daí para a frente, tudo é poesia feita de luz e sombra, beleza e feiúra, verdade e mentira, novo e velho, risada e reflexão. Oscilando assim, entre a graça e a melancolia, o filme fala sobre a passagem do tempo e as ilusões que ora nos traem, ora nos atraem para sua luz falsa e gloriosa, de projetor de cinema. Ao combinar imagens poderosas a um quase-silêncio idem, o desenho de Chomet evoca nossos desejos, encontros, perdas, os pequenos paliativos que usamos para aliviar as dores de viver, crescer e envelhecer. Tudo temperado pelo humor de Tati, verossímil, contido, tão parecido com nossas próprias patetadas involuntárias… Um palhaço “com a máscara colada à cara”, feito Álvaro de Campos, um ventríloquo que não desgruda de seu boneco e outros personagens inesquecíveis esperam por “tio” e “sobrinha” postiços numa Edimburgo ao mesmo tempo feérica e realista. O mais legal é que ambos não se constrangem de andar juntos para cima e para baixo e de dividir um conjugado num velho H.O., afrontando assim a babaquice politicamente correta que enxerga pedófilos dentro do pote de margarina. Um toque: entre no site da Mostra só para ver a vinheta, em que um anjo sobrevoa a cidade, carregando um homem nos braços: a melhor definição de cinema que já “vi” na vida.

Belo, claro, enigmático… do jeito que as religiões deveriam ser

“Para conhecer melhor as religiões” (Série Claroenigma, Companhia das Letras) é uma beleza de livro. Beleza no sentido grego clássico do termo, porque além de belo, ainda é bom e justo. O autor Patrick Bannon é um cientista das religiões com alma de poeta e o “ilustrador” (palavra mais besta) é um artista sagrado, descendente espiritual dos sacerdotes-pintores que, no neolítico, transformaram cavernas em catedrais. Essas duas feras produzem uma delicada bússola, que ajuda o leitor a planar sobre o oceano de obscurantismo, violência (literal e simbólica) e banalidade em que boiam as religiões em geral, neste nosso medíocre limiar de século 21. Feitas para reunir os homens por meio dos símbolos da trancendência que estes criam e partilham, as religiões, contudo, só fazem dividir. O livro, ao contrário, evoca o mistério tremendo e fascinante que resiste, apesar de tudo, por trás de tantas reduções mutiladoras da experiência do sagrado. Com palavras e imagens, os autores guiam seu leitor pelo eterno labirinto, cheio de armadilhas mortais, e que (eles reiteram sem afirmar) parece levar a um único e mesmo centro: a grande mônada, a divindade, a fonte da vida, o self cósmico, enfim, aquela imagem que você pode ou não revestir de palavra, mas que brilha dentro de você quando a água sobe ou a beleza te atinge direto no peito.

A nutrição da alma do contador de histórias

Livros nutritivos

“Patinhos feios” e “O murmúrio dos fantasmas” (idem), de Boris Cirulnik (Martins Fontes); “A arte de contar histórias” (Rocco)  e “Corpo em equilíbrio” (Cultrix), de Nancy Mellon; “Como um romance”, de Daniel Pennac (Rocco); “O que conta o conto?”, de Jette Bonaventure (Paulus); “Contos de fada vividos”, de Hans Dieckman (Paulus); “O dom da história”, “O jardineiro que tinha fé” , “A ciranda das mulheres sábias”; “Mulheres que correm com os lobos” e “Contos de Grimm” (prefácio e seleção), de Clarissa Pinkola Estés (todos da Rocco); “Contos de fadas” , de Oscar Wilde (Nova Fronteira); “Histórias do cisne” e “Histórias maravilhosas”, de Hans Christian Andersen (Companhia das Letrinhas); “O triste fim do menino ostra e outras histórias”, de Tim Burton (Girafinha); “O quarto do Barba Azul” (Rocco) e “103 contos de fadas” (Companhia das Letras), de Angela Carter; “Contos de piratas, corsários e bandidos”, “Contos, mitos e lendas para as crianças da América Latina” e “Contos de assombração”, de vários autores (Co-edição latino-americana / Ática); “Fábulas” de Esopo (Companhia das Letrinhas); “As mais belas histórias das mil e uma noites”, de Arnica Esterl (Cosac & Naify); “Palavra cigana”, de Florência Ferrari (Cosac & Naify); “Violino cigano”, “Nasrudin” e “A formiga Aurélia e outros modos de ver o mundo”, de Regina Machado (Companhia das Letrinhas); “O primeiro homem e outros mitos dos índios brasileiros”, de Betty Mindlin (Cosac & Naify); “Histórias de tia Nastácia”; “Histórias diversas” e “Contos de fadas de Charles Perrault” (tradução e adaptação), de Monteiro Lobato (Companhia Editora Nacional); “Histórias para crianças”, de Isaac Bashevis Singer (Topbooks); “Os príncipes do destino: histórias da mitologia afrobrasileira”, de Reginaldo Prandi (Cosac & Naify); “O dedo do imperador e outros contos japoneses”, de Cecília Casas (Landy); “Contos de Grimm” (2 volumes), adaptação de Ana Maria Machado (Nova Fronteira); “Novos contos de fadas”, de Terry Jones (Editorial Presença); “Assombrações do Recife Velho”, de Gilberto Freyre (Topbooks); “Uma ideia toda azul” e “Doze reis e a moça no labirinto do vento”, de Marina Colassanti (Nórdica); “Contos de fadas”, introdução e notas de Marie Tatar (Companhia das Letras); “Lendas brasileiras”, de Câmara Cascudo (Ediouro); “Um saci no meu quintal”, Mônica Stahel (Martins Fontes)…

Filmes vitaminados

“A marvada carne”, de André Klotzel; “O barão de Munchausen” e “Os irmãos Grimm”, de Terry Gillian; “Príncipes e princesas”, “Kiriku e a feiticeira”, “Kiriku e os animais selvagens” e “Azur e Aznar”, de Michel Ocelot; “A viagem de Chihiro” e “O castelo animado”, de Hayai Miyazaki; O estranho natal de Jack”, “Edward Mãos de Tesoura”, “A lenda do cavaleiro sem cabeça” e “A noiva-cadáver”, de Tim Burton; “O labirinto do fauno”, de Guillermo del Toro; “O contador de histórias”, de Luís Villaça; “O fabuloso destino de Amélie Poulain”, de Jean Pierre Jeunet; “Colcha de retalhos”, de Jocelyn Moorhouse; “Stardust, o mistério da estrela”, de Matthew Vaughn; “Sonhos”,de Akira Kurosawa; “A guerra do fogo”, de Jean Jacques Annaud; “A dama na água”, de M. Night Shyamalan; “Fanny e Alexander”, de Ingmar Bergman; “Feitiço do tempo”, de Harold Ramis; “O feitiço de Áquila”, de Richard Donner;  “Don Juan de Marco”, de Jeremy Leven; “Esperança e glória”, de John Boorman; “A era do rádio”, de Woody Allen; “Mary e Max, uma amizade diferente”, de Adam Elliot; “Coraline e o mundo secreto”, de Henry Selick; “9, a salvação”, de Shane Acker, “O corajoso ratinho Desperaux”, de Sam Fell e Robert Stevenhagen…


Comédias profundas sobre ritos de passagem para adultos

Duas comédias, uma americana e uma francesa. Dois filmes para assistir muitas vezes e ir descascando, feito cebolas. Duas narrativas construídas em camadas (talvez até involuntariamente pelos roteiristas).  Histórias engraçadas e  profundas, verdadeiros tesouros sobre rituais de iniciação da vida adulta: “Se beber, não case” (“The hangover”, de Todd Phillips) e “A Riviera não é aqui” (“Bienvenu chez le ch’tis”, de Dany Boon).  Na primeira, três amigos programam uma tradicional despedida de solteiro em Las Vegas, às vésperas do casamento de um deles. Um quarto elemento – o irmão bobão da noiva – se junta de improviso à turma, no último momento. Esse personagem esquisito e irritante será o gatilho da aventura que todos viverão e que desencadeará mudanças cataclísmicas nas vidas de todos. Uma viagem coletiva ao mundo das sombras, guiada por um bufão dionisíaco, de onde todos retornam transformados, de moleques crescidos em homens de verdade. Na segunda história, uma pequena família complicada enfrenta as próprias fantasias de felicidade e infelicidade, quando o pai e marido, um burocrata dos correios, pede transferência para uma cidade da Riviera francesa e é enviado a Nord Pas de Calais. Entre expectativas traídas e preconceitos superados, as risadas fazem a gente pensar em como construímos nossos projetos sobre mentirinhas aparentemente inócuas, mas que nos impedem de viver a vida como ela merece ser vivida. Maravilhosamente engraçado, o filme aposta numa relação insólita entre o miniexecutivo contrariado e um carteiro abobalhado que, claro, servirá de guia ao primeiro em mais essa aventura  dionisíaca.

Dia dos Mortos no ateliê de artes

Este post relata uma experiência no ateliê livre de arte para crianças, coordenada pela arte-educadora e artista plástica Ana Cristina Ronconi, do ateliê Ocuili, no Itaim-Bibi, São Paulo. Trata-se de um trecho do artigo “Trabalhando para chegar ao significado”: pequenas histórias do ateliê de artes, sobre a importância da arte na vida e na educação das crianças. Damos notícias quando o texto integral for publicado.

Entrar num processo artístico significa não se fechar a nada. Significa perguntar: “Que uso posso dar a isso tudo?” (Anna-Maria Holm)

O ateliê de artes é sempre uma experiência em que as culturas e seus símbolos são deliberadamente convidados a participar e estão conscientemente representados por meio dos artistas e suas obras, dos materiais, das imagens que vêm enxamear ao redor do trabalho, das histórias que elas mobilizam ou que as mobilizam, das vivências das crianças etc. O ateliê de artes é um lugar onde valores opostos podem dialogar e reconciliar-se: vida e morte, alegria e dor, atividade e passividade, luz e sombra… Mais