Então fui ver o filme e achei ruim. Fora esse fato incontornável (afinal gosto é gosto), se você acredita que “Mulher-Maravilha”, o filme, tem alguma remota relação com empoderamento feminino, mitologia grega, relações internacionais, moda e decoração no início do século 20, história das armas químicas e dos conflitos mundiais, tenho um único comentário a fazer: Santa Ingenuidade, Batgirl! “Mulher-Maravilha” é um blockbuster de super-herói da franquia DC que, numa jogada de marketing genialmente oportunista, manipulou o imaginário corrente para: (a) encher de dinheiro os rabos de estúdio e produtores e (b) entusiasmar incautes (atentem para o uso linguisticamente correto do sufixo de gênero neutro) que acham que feminismo é copiar o masculino e colar em cima uma etiqueta com duas bolinhas e um triângulo preto estampados (e encher de dinheiro etc). Amazonas que adoram Zeus? Oi? O galanteador-sedutor-eventualmente-estuprador que estaria hoje, no Brasil, dividindo cela com o doutor Abdelmassih, caso tivesse sido suficientemente temerário para abordar, com seu estilo, digamos, criativo explícito, alguma mortal no século 21? Bom, temos aqui mesmo, na terrinha, alguns deuses machistas igualmente incensados por feministas, então nada de se estranhar. Entretanto é melhor não confundir fato com mito, muito menos pastiche com narrativa mitológica. As amazonas originais, as legítimas, adorariam sim é capar Zeus, caso tivessem alguma chance. Ártemis, a deusa que justificou minha existência naquela pífia entrevista, mesmo sendo uma das filhas favoritas de Zeus, não ia gostar nada nada nada de se ver, mais do que preterida, ignorada pelas moças belicosas que deveriam prestar-lhe culto. Her heart belongs to Daddy, mas cada qual com seu eleitorado, certo? Tá bom que deram o nome latino de Ártemis à mocinha, mas em Diana morreu a referência. Mais ainda porque essa Diana não é princess: é Prince, ou seja, macho pacas. Por falar em pai e filha, como se reproduzem as amazonas do filme? Por partenogênese? Quero também deixar registrada minha denúncia: não vi nenhuma amazona asiática, o que denota clara discriminação étnica por parte do pessoal do casting.
Em suma, o imaginário da Mulher-Maravilha é tão heroico quanto o de Thor, Superman, Batman, Capitão América e outros paladinos malhados e descompensados, cujas sagas-clichê abarrotam de ouro as guaiacas dos magnatas-alfa de Hollywood. Na cartilha deles, lucrativo é agradar aos habitantes da curva. Então distribuam-se porradas, explosões e golpes, aumente-se exponencialmente o volume, tudo isso com fundo de pastelão histórico-mitológico. A curva haverá de pagar ingresso, comprar pipoca e corcovear de gozo. Duas honrosas exceções recentes: (a) “Batman-Lego”, o melhor filme de super-herói dos últimos tempos, e (b) “Doutor Estranho”, que tem na personagem hierática e impenetrável de Tilda Swinton uma figura de mentora de heróis à altura de Palas Atena. Fora o Benedict Cumberbarch (confessa a “cumberbitch” aqui), encarnando o médico fodão que vai da hybris à miséria, reenviado aos próprios limites, e precisa se reinventar por completo. Em “Batman-Lego”, a fragilidade do protagonista sociopata, imaturo, mascarado e blindado fica ainda mais evidente na presença da fofa Barbara Gordon, uma mulher competente, resiliente, corajosa e sensível, engajada na proteção da polis. Querem ver filmes feministas de super-herói? Vão assistir Batman-Lego e Dr. Estranho, que falam de parceria entre os opostos e não de sectarismo idiota. Quanto à Diana Prince a mocinha vivida na tela pela linda Gal Gadot, ela é eclipsada sempre que entra em cena a deliciosa sufragete Etta Candy, secretária do bonitón. Aliás, me lembrei da Barbara Gordon do Batman-Lego quando vi a Etta. Para mim, a Mulher-Maravilha da hora não passa de mais uma campeã do patriarcado, como tantas que abundam nos dias de hoje no mundo, guerreiras armadas com a espada luminosa da razão, um falo alentado e cortante que se compraz em fragmentar o mundo numa miríade de campos de batalha. Com seus traços perfeitos, seu romance meloso com o irresistível “capitão Kirk” e sua vistosa blindagem azul e vermelha, quase fundida ao corpo escultural, Diana Prince só empodera estúdio e franquia. E diverte, claro, aos fãs do gênero. Nada além disso.