A minha história da Mulher-Esqueleto

Clarissa Pinkola Estés reconta essa história da tradição dos inuit. Eu retomo o fio da mesma meada e conto minha própria versão, porque os contos são assim mesmo: são contas de um colar que vão se juntando a cada reconto, formando um círculo dentro do qual se abriga o significado. Se você quiser ler a versão de Clarissa, ela integra o capítulo 5 do livro “Mulheres que correm com os lobos”. 

MINHA VERSÃO

Era uma vez uma moça que desobedeceu seu Pai. Por isso, ela foi atirada no mar, do alto de um penhasco. O corpo dela despedaçou-se lá embaixo. Seu esqueleto, porém, aguentou bem a queda e não se estragou muito. Os peixes comeram sua carne e seus olhos, de modo que só sobraram ossos. Tanto tempo ela passou metida dentro da água que até as unhas e os cabelos desapareceram. Por causa dela, aquela linda baía, cheia de peixes, ficou mal assombrada. Ninguém mais ia pescar lá, com medo de não se sabe bem o quê.

O HEROI INCAUTO

O pescador nunca tida ido pescar por aquelas bandas, muito menos ouvido as histórias da enseada. Chegou lá com seu caiaque, olhou em volta, viu os peixes nadando quase à tona d’água e achou que tinha feito uma grande descoberta. Jogou a rede e logo sentiu a puxada. Ia ter peixe para mais de um mês, pelo tanto que  bicho pesava. No fundo, porém, a rede engachara nas costelas muito brancas da Mulher-Esqueleto. E ela sentiu que começava a ser içada para cima, em direção à superfície, rumo à luz do sol. Assustada, ela lutou como pôde, mas o pescador era forte e estava decidido a não deixar sua presa escapar. De jeito nenhum.

SUR-PRESA!

Quando a rede finalmente chegou à tona, o pescador deu um grito. Enroscada nos fios de seda, lá estava ela, a  Mulher-Esqueleto, muito lisa e limpa, o crânio redondo, os buracos vazios onde seus olhos haviam estado, o horrendo sorriso congelado na boca. Seus ossos estavam enfeitados de algas e corais, de conchas e cracas, mas isso não melhorava em nada a aparência dela. Ao contrário. O pescador começou a remar loucamente em direção à margem. Enredada, a Mulher-Esqueleto foi arrastada pelo caiaque, feito uma esquiadora macabra. O pescador arrancou o caiaque da água e o puxou, sem olhar oara trás, até o iglu que tinha construído nos arredores, pois pretendia ficar lá pescando por algum tempo. Embaraçada na rede, a Mulher-Esqueleto veio junto. Ele juntou a rede, sua preciosa rede, mas ainda não tinha coragem de olhar para trás. E ele se meteu no iglu, crente de que tinha se livrado da coisa medonha.

NÃ NÃ NÃ

Ele acabou de puxar a rede para dentro, com o coração aos solavancos. Foi só abrir melhor os olhos para constatar que os ossos da Mulher-Esqueleto estavam embaraços na rede,  barrando a passagem do iglu com a horrenda figura desconjuntada. Quieta. Parada. Pavorosa. Melancólica e humilde. Tanto que o pescador sentiu pena dela. Viu que era bobagem ter medo de uma coisa tão morta. Teve pena porque imaginou que ninguém chorara por ela, nem preparara o seu corpo para o funeral, nem invocara os deuses para que viessem buscar sua alma. Se ele não a desembaraçasse da rede, teria de jogar a ambas no fundo da enseada. E sua rede era tão boa, feita com fios de seda muito, muito resistentes. Então ele acendeu o fogo, sentou-se diante da Mulher-Esqueleto e começou o trabalho. Para não ter medo, ele trabalhava e cantava: “Nã, nã, nã…”. Ia desembaraçando e cantando. A Mulher-Esqueleto sentiu o toque das mãos quentes do pescador e teve saudade de sua própria pele macia. Ela sentiu os dedos dele passarem sobre as pranchas lisas de seus ossos e teve saudade do tempo em que tinha uma pele morna , que gostava de ser beijada. Por horas a fio o pescador trabalhou. Por fim, conseguiu reaver a rede e livrar dela a Mulher-Esqueleto. E tão cansado estava, tão acostumado com ela, que agora conhecia muito bem, que ele se meteu no saco de dormir, cobriu-se com a pele de foca e caiu num sono profundo.

UM CORAÇÃO DE CARNE E SANGUE

Foi o pescador dormir e a Mulher-Esqueleto acordar, com a luz da fogueira entrando pelos buracos dos seus olhos sempre abertos. Ela espiou ao redor e viu que ele dormia, exausto, metido no saco. Viu também que uma lágrima rolava dos olhos dele, uma desses lágrimas que escapam pelo canto dos olhos, quando sonhamos. Com os ossos estalando baixinho, ela recolheu a lágrima e a bebeu. Ela, que tinha vivido tantos anos metida em água salgada, sentiu passar enfim uma sede antiga, que a água da  enseada nunca pudera saciar. Então ela meteu uma das mãos no peito do pescador adormecido e de lá retirou seu coração quente e palpitante. Pôs o coração dele dentro da gaiola do seu próprio peito vazio e chamou: “Carne!”, com a voz sibilada de quem não tem mais língua. Enquanto o coração dele batia no peito dela, o corpo dela se recheava de vísceras, os músculos teciam-se para cobri-las e forrar os ossos e uma pele macia se estendia sobre tudo aquilo. Olhos escuros agora boiavam nas órbitas, pestanas e cílios brotavam como capim sobre a pele, lábios tenros floresciam, escondendo uma língua úmida e vermelha, mãos redondas e delicadas se desdobravam em artelhos e unhas, seios brotavam no peito…

DE VOLTA

De novo inteira, ela se meteu no saco macio, bem junto ao corpo dele. Recolocou com cuidado o coração dele no peito, pois agora tinha seu próprio coração de volta e não precisava de dois. Ele resmungou e abraçou-a. Morna e redonda, macia e satisfeita, ela suspirou e também adormeceu. Depois disso, eles continuaram juntos e partiram para longe, tiveram muitos filhos e nunca passaram fome ou necessidade, porque as criaturas da água, que era amigas dela, os protegiam e sustentavam.

Dia dos Mortos no ateliê de artes

Este post relata uma experiência no ateliê livre de arte para crianças, coordenada pela arte-educadora e artista plástica Ana Cristina Ronconi, do ateliê Ocuili, no Itaim-Bibi, São Paulo. Trata-se de um trecho do artigo “Trabalhando para chegar ao significado”: pequenas histórias do ateliê de artes, sobre a importância da arte na vida e na educação das crianças. Damos notícias quando o texto integral for publicado.

Entrar num processo artístico significa não se fechar a nada. Significa perguntar: “Que uso posso dar a isso tudo?” (Anna-Maria Holm)

O ateliê de artes é sempre uma experiência em que as culturas e seus símbolos são deliberadamente convidados a participar e estão conscientemente representados por meio dos artistas e suas obras, dos materiais, das imagens que vêm enxamear ao redor do trabalho, das histórias que elas mobilizam ou que as mobilizam, das vivências das crianças etc. O ateliê de artes é um lugar onde valores opostos podem dialogar e reconciliar-se: vida e morte, alegria e dor, atividade e passividade, luz e sombra… Mais