O Enforcado e Calígula

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Nosso grupo de estudos do tarô mitológico teve de rearranjar a data do encontro mensal, em função de feriados e ausências previamente anunciadas. O arcano maior do mês de novembro é O Enforcado, uma das imagens que mais tememos e rejeitamos no tarô, como se ela não tivesse nada a ver com nossa condição de pendurados pelo pé de cabeça para baixo. Enquanto esperávamos para encarar essa metáfora do desconforto e da precariedade do humano no mundo, o resultado das eleições americanas parecia fragilmente assegurado por nossas superestimadas estratégias de racionalização (do lado dos democratas, é claro). Projeções, pesquisas de intenção, estatísticas, os números aos quais o ego coletivo rende um culto quase insano de tão racional, separavam os dois candidatos por um fio de cabelo. Era empate técnico, mas Hillary aparecia à frente. Há quem a acuse de ter sabotado, por orgulho e teimosia, uma vitória democrata, já que tem grande índice de rejeição devido à história de Benghazi e aos famigerados emails. Eu, de minha parte, acho que o Império prefere ter um louco a ter uma mulher ocupando a Casa Branca. Pode oligofrênico, pode preto, mas mulher não pode. A folha corrida de Hillary, que nunca foi santa (e se até Madre Tereza teve seus podres…), não pode de modo algum ser pior que a de Calígula, certo?

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Errado. Calígula venceu porque não estamos falando de uma razão lógica que compara folhas corridas. Quando falamos de política, religião e futebol não estamos realmente falando de religião, política e futebol mas de arquétipos, deuses ou forças psíquicas, escolha o seu, cujo poder criativo-destrutivo desconhecemos, muito embora elas rejam, de fora e de dentro, nossas pobres vidinhas microscópicas. Movimentando-se fora da percepção racional do ego, o individual e o coletivo, essas forças transpessoais irracionais o destruirão se forem mantidas inconscientes, tal como fizeram com o ego germânico, entregue ao delírio de poder nazista (nem vou tocar na hybris do ego lulopetista porque ela está demasiado próxima no tempo e no espaço e ainda tem entusiasmados apoiadores). Isso a menos que o ego as reconheça, integre em sua vida consciente e recolha-se, modestamente, a sua insignificância. A vitória de Calígula é, pois, a vitória previsível e o retorno reiteradamente anunciado da Grande Sombra Americana, o chorume pestilento que escorre aos borbotões e fora da vista do lustroso ego heroico instalado no topo, para se aninhar nos desvãos mais baixos e sórdidos da vida psíquica dos cidadãos da maior nação do mundo. Já disse Jung: quanto maior o ego, maior a sombra. Venceram a KKK, o Tea Party, os rednecks, o white trash em grotesco conluio com o establishment wasp? Será essa criatura o fruto mal formado de um casamento, celebrado numa capela cafona de Las Vegas, entre a obesa mórbida loira e desempregada, mãe solteira depressiva e o ruivo aristocrata descendente dos peregrinos do Mayflower, pedófilo e gay enrustido?

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Fato é que foi a sombra do Império que venceu as eleições (e não pela primeira vez), o que deveria mobilizar toneladas de reflexão retardatária por parte dos mocinhos perdedores. Infelizmente, porém, eles já devem andar atolados no charco raso dos debates sobre as causas econômicas, sociopolíticas, étnográficas, demográficas e históricas da derrota. Terão os crentes da América por fim entronizado o Anticristo, a fim de que ele apresse o Armagedon e convoque o apocalipse? Aliás o apocalipse já está aí, ou a “revelação”, que é o que significa a palavra grega. Algo tremendo foi revelado como mais um resultado do longo processo de formação do imaginário americano, processo e imaginário que devem permanecer ignorados e subestimados pela gloriosa America pensante. Fiquemos, pois, e como sempre, com os resultados, adiando o encontro com a sombra e desse modo preparando a chegada de futuros Calígulas, se esse não apertar o botão do fim do mundo. O que nos aflige é tão somente imaginar que mundo ocupará o lugar desse que hoje morreu. Então volto aqui ao nosso arcano de novembro, que previu sem que perguntássemos o tipo de energia que estaria regendo o dia de hoje e que deve reger os próximos dias, meses, quicá anos, se os houver. No tarô mitológico, ele é representado por Prometeu, o titã que presenteou o fogo aos homens e por isso é tido como benemérito protetor da humanidade. Pai dos homens, a modelagem em barro de nossa espécie mal cozida foi encomendada a ele e ao irmão Epimeteu pelo grande Zeus, que não queria sujar as excelsas mãos com porcaria. Num trocadilho óbvio demais, Prometeu é o sujeito que promete. Isso faz dele, na prática, o padroeiro de todas as campanhas políticas. Assim qualquer sujeito arrogante o bastante para vender soluções ao alheio a troco de transferência de poder e usando as fragilidades e inseguranças desse alheio como estratégia para manipulá-lo a seu próprio favor, será um indivíduo prometeico, não importa se de direita ou esquerda, democrata ou republicano, conservador ou progressista, corinthiano ou palmeirense e toda essa baboseira dualista que persistimos utilizando para tentar explicar o que não se explica.

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Etimologicamente Prometeu é aquele que pensa antes, o que não o impede, contudo, de cometer erros titânicos ou até mesmo o leva a cometê-los, por excesso de autoconfiança, orgulho e prepotência. Na carta, ele pende, acorrentado de cabeça para baixo num rochedo, no topo do monte Caúcaso (é bom lembrar que nem todo topo é um pódio). Desafiou Zeus e está sendo punido por seus excessos. A águia olímpica vem devorar seu fígado durante o dia. À noite, o órgão se regenera, na genial intuição metafórica do mito grego. O Enforcado cai como uma luva para o dia de hoje. Serve para Hillary e os democratas, serve para o mundo virado de cabeça para baixo e refém de um demente que terá ao alcance de suas mãozinhas hipotrofiadas o controle da maior máquina de guerra do planeta, serve para o próprio demente, que mal ou bem terá de se haver com a imensidão da sombra que mobilizou para consagrar-se. Tudo o que é titânico pede para ser afundado, disse o junguiano Glen Slater numa palestra linda e profética. Nossas ideologias políticas e religiosas, bem como nossa medicina e tecnologia, são titânicas em sua pretensão ilusionista de construir paraísos artificiais em lugar de ajudar as pessoas a lidarem com o aqui e agora da realidade concreta. Não importa se mal ou bem intencionado, o titanismo nos convence de que é possível erradicar o polo negativo da experiência de viver: a dor, a pobreza, o sofrimento, o desemprego, a velhice, a morte. De uma perspectiva menos lógica e mais mitológica, e ainda de acordo com Slater, quando os titãs estão no comando, eles expulsam os deuses, os portadores do mistério cuja evocação pode aliviar nossas compulsões de perfeição e controle, as figuras de nossa imaginação que contêm a razão, em sua sanha por criar paraísos impossíveis, e a reenviam aos próprios limites. A possessão titânica, por sua vez, expulsa os deuses para presentear o mundo à humanidade na forma de uma idealização inatingível, como se essa dádiva não tivesse uma apavorante contrapartida. “O mundo existe para servi-los, meus filhos, e não o contrário”, eis a afirmação dele que melhor seduz os incautos. Neste momento em que o arquétipo do Pai está gravemente mutilado na psique coletiva, Prometeu vem encarnar uma figura de Pai permissivo e perverso, em sua afirmação irrestrita do desejo dos filhos, não importa o quão perversos eles mesmos sejam, até porque é nele que se espelham. Arrogância, prepotência, radicalismo, excessos, desrespeito à diferença, hybris, priapismo, orgulho, vaidade e paranóia são atributos que podemos odiar em Calígula, mas que seus devotos aprovaram incondicionalmente nas urnas. Prometeu personifica o pai-titã que engole os filhos para que eles se sintam protegidos, ainda que cegos e imobilizados, no interior de sua alentada pança. Assim ele os impede (em prol de seus interesses) de se desenvolver. E nisso Calígula está longe de ser um caso isolado. Mas é certamente o mais visível.

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Fantasmas

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“A colina escarlate”(Crimson Peak, 2015) é meu tema do Dia dos Mortos deste ano e o filme mais recente de Guillermo Del Toro, mexicano que ocupa um lugar de honra no meu panteão de diretores arquetípicos. Um genuíno filme de fantasma, coisa que Del Toro sabe fazer como poucos hoje em dia, com sua fina intuição para o manejo da metáfora. Se você tem medo de fantasma, não assista. Mas se, como eu, os fantasmas ressoam no seu mundo interno, coragem. Você não vai se arrepender. O filme recupera o melhor da tradição literária gótica vitoriana, seja na construção dos personagens, seja na estruturação da narrativa,  seja na ambientação pesada, opressiva: climas, adereços, figurinos e cenários, tudo coopera para espelhar a alma e seus labirintos. Do começo ao fim, permanecemos dependurados de cabeça para baixo, no fio tenso de um bom paradoxo. O Feminino encarna o agente redentor-destruidor do Masculino e, nesse sentido, “A colina” é uma maravilhosa história da parceria e mediação entre opostos-complementares, vivos e mortos, mães e pais, irmãos e irmãs, ego e inconsciente, razão e loucura…

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As fantasias favoritas de Del Toro retomam aqui, com a sensibilidade e a profundidade usuais – e sem maneirismos desnecessários -, o tema do feminino assombrado que inicia uma mulher ingênua nos mistérios do amor e da morte. Um pai superprotetor expõe a filha ao predador, enquanto seu amor por ela igualmente a provê de um animus que, despertado pelas circunstâncias, se revela excepcional. Uma mãe boa e frágil retorna da morte para revelar um importante segredo à filha, segredo que ela mesma acessou ao cruzar o portal, mas que a filha ainda não tem elementos para compreender. Outra mãe, longeva e devorante, investe inadvertidamente numa sucessora ainda mais mortífera. Um homem frágil é assujeitado por uma devastadora anima negativa. Um casamento infernal e outro, celeste, acorrentam os noivos numa tragédia de proporções míticas. Um oftalmogista que acredita no invisível vê o que está posto diante dos olhos, mas que os outros não conseguem enxergar. A natureza se rebela contra a máquina. Aliás a tecnologia aparece como coisa muitíssimo mal assombrada, pura verdade.

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A história fala das fantasias do estilo gótico novecentista como uma reação da imaginação à desolação que a Revolução Industrial impôs à Alma do Mundo, uma reação tão frágil quanto eficaz, porque é na alma que ela se instala. E a alma confronta, com suas fantasias terapêuticas, a sombra da ciência, da indústria e da filosofia positivista. Mais do que tudo, “A colina escarlate” me levou de volta a “O morro dos ventos uivantes”, de Emily Brönte, um dos livros da minha vida, numa viagem de revisão que me esclareceu sobre os motivos do apreço que tenho por fantasmas.  Eles nos assombram e afligem, penso eu, porque são, na essência, mensageiros do inconsciente que assediam o ego para alertá-lo de grandes perigos e ajudá-lo a tomar consciência de algo muito sombrio. O ego, contudo, se defende como pode das coisas que não quer saber.

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A forma fantasmagórica aterroriza o ego, embora não haja nela uma ameaça real, ao contrário. Os fantasmas pretendem revelar um estado de coisas intolerável deslocando o sujeito da zona de conforto, forçando-o a encarar uma realidade que clama por mudança, uma lealdade tóxica, um segredo que apodrece dentro dele. Assim o fantasma de Catarina de “O morro” vem pedir ao Sr. Lockwood tão somente uma escuta para sua história, um pouco de compaixão e ajuda para libertar-se e libertar a vida, ajudando-a a retomar seu curso. “A colina” remete a “O morro” até mesmo nas referências à topografia. Se você subiu numa, pode se arriscar a escalar o outro. Sua alma vai agradecer por mais esse fantasma.

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