O dom do peso

Gravidade

Ryan Stone está sem chão. Literal e metaforicamente. É mulher, mas tem nome de homem. É da família Stone (pedra), mas está solta no espaço. Enquanto os machos da missão espacial que ela integra se divertem com a absoluta falta de peso, feito dois meninos tomados por uma brincadeira, Ryan transpira, luta contra a taquicardia, está na iminência de ter um surto de ansiedade. Mas fica firme. Ou quase. Ryan Stone é a protagonista de “Gravidade”, de Alfonso Cuarón, filmaço que fui ver ontem.  Cuarón é um diretor simples e profundo, o que me soa como redundância, porque tudo o que é verdadeiramente profundo costuma ser, também, espantosamente simples.  Ele sabe contar uma história sem derrapar em estetismos e em excessos formais. Até os efeitos especiais, que não são poucos em “Gravidade”, estão a serviço do significado e não da mera pirotecnia, frequentemente usada por Hollywood para esconder a indigência ou mesmo a ausência de uma história. O 3D, de que eu nem gosto muito, orna com o filme que é uma beleza. A viagem arquetípica de “Gravidade” começa, portanto, pelo nome da personagem vivida por Sandra Bullock, uma amostra modelar do feminino pós-feminista, aflito, desvirtuado e oprimido pelo neopatriarcado complacente. O pai de Ryan queria que ela fosse um menino e por isso lhe deu esse nome. Então ela já estréia no mundo sob o signo da aceitação relutante do Pai. Ainda assim, ela passa a vida obedecendo a esse Pai cultural, como grande parte das mulheres em nossa cultura global, e para desgraça dessa mesma cultura, que precisa lidar com os devastadores efeitos colaterais da rejeição da condição feminina pelas próprias mulheres. Então o primeiro fio do enredo de “Gravidade” é o nome completo da protagonista, essa mulher tomada por homem, essa “pedra” que precisa ser “asa”, designada (designed) para ser herói e voar para alturas cada vez maiores, a fim de agradar a esse Pai sumamente decepcionado com a falta de pênis da cria. Por sorte, Cuarón se compadece de nós, pobres espectadores, e faz um filme curto, já que sua intenção é nos enfiar na pele da doutora Stone, para nos submeter a todas as experiências excruciantes vividas por ela no espaço, experiências de perda de referência, de conexão, de comunicação, do companheiro de viagem, do ar, de si, em suma, de perda do chão, literal e metaforicamente. Perda que Ryan já viveu até o limite, com a morte da filha de 4 anos, mas que ainda não elaborou. Leveza-peso, masculino-feminino, razão-instinto, espírito-corpo, criação-destruição, vida-morte, divino-humano são alguns dos opostos com que o roteiro brinca maldosamente, pedagogicamente. Mas se você estiver bem atento e não muito nauseado, certamente vai encontrar outros. Cientista, médica, astronauta mas, acima (ou abaixo) de tudo, mãe enlutada, Ryan, que nasceu pedra, não consegue, contudo, aterrar, ancorar, fixar-se no mundo. Como ela mesma relata ao enxerido doutor Kowalsky, o chefe da missão, Ryan viveu o luto da filha dirigindo, dirigindo, dirigindo noite adentro, de volta para uma casa sobre a qual ela não tem nada a dizer, à qual nunca conseguiu chegar de verdade. O Kowalsky de Clooney, por sua vez, é o herói caído e traído, o astronauta corneado, que estava flutuando no espaço quando a mulher decidiu trocá-lo por um homem mais concreto. Para sorte de Ryan, K. oferece-se como tela de projeção de um masculino enfim cooperativo, um animus eficiente  e sensível (ele é George Clooney, mulherada!), o parceiro recém-descoberto (ah, como a gente torce para esse casal vingar..), perdido e depois reencontrado sob nova roupagem, surpreendente. K. passa o tempo todo a cutucar e a espremer Ryan, a incomodá-la em seu doloroso isolamento, a forçá-la a falar de si e do passado, um pouco para ajudá-la e relaxar, mas principalmente para obrigá-la a interagir com outro ser humano. Uma bela inversão: nessa dinâmica, quem desempenha a função de relacionamento, que cabe ao feminino, é um homem com uma dor, do tipo “muito mais elegante”, como defendia Paulo Leminsky, outro descendente de polonês. Prova de que o feminino está lá, positivo e operante, em todas as variações de gênero e, ultimamente, anda se expressando melhor nos homens que nas mulheres. K. é um homem cheio de alma, o que nos faz amar ainda mais o George, oh my… Três momentos são, para mim, a síntese das lebres que Cuarón levanta, nesse filme que não tem muita pretensão de verossimilhança externa, mas que é um primor de verossimilhança interna, ao fazer ressoar suas imagens pregnantes dentro de nós. O primeiro momento precioso é aquele em que, na iminência de largar mão do esforço sobre-humano e se deixar morrer humanamente, Ryan capta, pelo rádio, a voz de um chinês que, primeiro lida com seus cachorros, para depois ir ninar seu bebê. Ela se comove com os latidos dos cães, uiva um pouco com eles, como se sua alma buscasse entrar em contato com algum substrato arcaico e instintivo, capaz de salvá-la da morte. Em seguida, ela escuta o choro do bebê e se emociona com o acalanto que o homem se põe a cantar, mais um homem tomado pelo feminino, um pai-mãe com quem ela pode identificar-se. O segundo momento é o da invasão da cápsula que está para se transformar em ataúde, quando K. intervém espetacularmente para dar a chacoalhada final em Ryan. O terceiro momento é epifânico e se divide, simbolicamente, em três partes. Primeira: a queda do herói, previsível e inevitável, porque ninguém consegue passar muito tempo sem peso, boiando sem corpo no espaço, entretido na mais pura abstração, vejam só Ícaro e Faetonte, isso para falar apenas em personagens míticos. Segunda parte: o mergulho da cápsula na água, seguido pela luta de Ryan para escapar do útero tecnológico aonde ela, depois de refeito seu pacto com a vida, corre novamente o risco de soçobrar. Mais uma inversão bacana aqui, a cápsula que passa de túmulo a útero e nem por isso deixa de representar uma ameaça à vida de sua ocupante. E como Ryan luta para renascer desse rito lustral! Um batismo vivido num território medial entre Terra e Céu, entre Mãe e Pai, água que representa a emoção que Ryan negou e represou, e com a qual ela parece finalmente pronta a acertar as contas. Por fim, a terra encharcada, vermelha e macia que acolhe seu corpo aliviado e exausto, que pode repousar, por fim, na posição horizontal. E na terra, na Terra, o peso que retorna, a dádiva da gravidade, o chão lamacento e fértil, sem idealizações nem mediações tecnológicas. Chão e pronto. Um presente para pés cansados de flutuar por aí, levados a alturas desmesuradas por cabeças hipertrofiadas. Na cena final, Ryan é Eva caminhando pela primeira vez no Jardim do Éden, é a criança que se ergue  sobre as próprias pernas, titubeante e maravilhada, sem brandir ferramentas, como no 2001 de Kubrick. Só dona do seu corpo. The End.