Tata tem 88 anos. Quando mocinha, era minha tia-ídola. Linda, respondona, pernóstica que só ela, cabeleira negra da asa da graúna, retocada nas raízes quase toda semana, em luta vã contra uma mecha branca precoce. Na minha fantasia de menina de cabelo crespo, seu cabelo basto de Branca de Neve era a fonte de onde provinha sua força. Tata era a tia ideal para uma menina de seis anos, porque era meio comprometida, meio blasé. De vez em quando, aos sábados, ela nos levava para visitar o laboratório de análises onde trabalhava. Lá chegando, nos exibia aos médicos e às colegas, ganhávamos elogios e distribuíamos beijos. Também visitávamos um banheiro sinistro onde, melancólicos prisioneiros de uma banheira, sapos aguardavam o momento de ser sacrificados no altar da ciência médica. Também brincávamos com coelhinhos idem, mantidos num viveiro no quintal. Era belo e horrível, mas ainda não sabíamos que era horrível. Alguns desses passeios se transformavam em efemérides, caso Tata tivesse recém-recebido o salário. Nesses dias muito especiais, ela nos levava para passear no centro da cidade. Ao Mappin, para comprar bobagens deslumbrantes, tipo tranças falsas de nylon, confete e serpentina, roupinhas de bonecas. Às Lojas Americanas, para comer cachorro-quente com molho.
Acho que foi em 1967, no meu décimo aniversário, que tudo aconteceu. Era uma manhã de sábado. À noite, haveria uma festa em casa e minha mãe se desvelava no preparo dos sanduíches e docinhos. Já tinha um tempo que eu notava que alguma coisa se passava com Tata. Uma tempestade subtropical, um ciclone, um tsunami se formava dentro e ao redor dela. Eu captava os sinais nela e no entorno, escutava comentários e sentia a pressão que parecia ter minha tia como epicentro. Frequentemente também escutava que Tata tinha “minhocas na cabeça”. Minhocas, eu só conhecia as que meu pai enfiava no anzol quando ia pescar e as que eu cutucava na terra dos vasos do quintal. Eu achava que minhocas tinham uma natureza resignada e benfazeja, ao contrário das taturanas, e portanto minhocas na cabeça não deviam ser um problema. Naquele tarde de sábado, as taturanas na cabeça de Tata a levaram a tomar uma atitude radical e literal. Ela decidiu que iria mudar assim, de uma hora para a outra. E iria estrear sua nova persona, sedutora, livre, poderosa, na minha festa da aniversário. De manhã, Tata saiu para ir à cabeleireira, decidida a voltar para casa transformada em outra pessoa. Mas só por fora. Mimada e teimosa, não valeu de nada a argumentação da pobre cabeleireira, em favor do bom senso. Para ela, bastava de bom senso e, nesse dia, as taturanas estavam com a macaca.
Chegou a hora da festa e Tata não chegava. Serviram-se os sanduíches e nada. Chegou a hora de cantar parabéns e nada. No final, quando os últimos convidados já se despediam, Tata chegou. Não sei se ela ficou retida no salão até aquela hora ou se se escondeu em algum lugar, evitando encarar as pessoas. Lembro bem do choque quando vi minha tia “linda maravilhosa”(como ela costumava classificar a si mesma e a nós, suas sobrinhas) com o cabelo num tom de cor de rosa-alaranjado, cortado rente à cabeça. A violência da descoloração queimou seu couro cabeludo e destruiu sua cabeleira esplendorosa de deusa. Um lugar dentro dela também foi destroçado e nunca mais se restabeleceu. Tata queria ter chegado loura platinada em minha festa. A outra dentro dela, que tanto queria emergir, deu um jeito de passá-la pelo fogo da transformação. Sabotada pela sombra, seu ego frágil e infantil não deu conta de responder à altura a tamanho desafio.
Hoje Tata tem mais ou menos 4 anos. De idade emocional. Seu ego mal coagulado estancou naquela noite, em 1967. Dali para a frente, sua vida emocional só fez regredir. Depois do episódio do cabelo, ela teve alguns surtos, nem sei bem do quê, e foi submetida a algumas internações. Eu vi minha linda tia, que sabia desenhar e “trabalhava fora”, desconstruir-se. Seu cabelo nunca mais recuperou o brilho e o volume. Tata seguiu sua vida como uma menina impotente e raivosa, cada vez mais dependente dos outros. Casou-se até, com um antigo namorado de adolescência. Contudo parou de crescer. Alguém dentro dela, talvez a bruxa que a levou a pôr fogo nos próprios cabelos, a manteve criança para sempre, tão superprotegida quanto amedrontada. Assim ela passou, da tutela da mamãe à de um e de outro irmão. Depois se tornou a menininha do marido e, quando enviuvou, sem filhos, retornou à tutela do segundo irmão, meu pai. Suas tentativas radicais e literais de se tornar independente a foram isolando cada vez mais daqueles que, por a amarem muito, interferiram demais na sua vida. E pior: com procuração dela. Aos 88 anos, Tata vive numa ilhota de consciência muito precária e é tutelada com desvelo e dedicação pela filha de um de seus irmãos-pais, minha prima linda maravilhosa. Mora numa casa de repouso cara e deprimente. Fui ajudar minha prima com ela, numa consulta médica esta semana. “Você gosta de mim?”, ela pergunta a todo mundo. Se a resposta é afirmativa, ela insiste: “Quanto? Muito ou pouco?” Nossa conversa, bem louca e engraçada, é a mesma que se entretém com uma criança pequena. Pergunto a ela quem eram seus seis irmãos e ela me responde, pelo nome, em ordem cronológica. “E eu sou a caçulinha!”, faz questão de pontuar ao final. Sim, Tata, você é.