Onde os deuses vêm repousar

Onde os deuses vêm repousar

Arranjinho de flores caseiro: uma oferenda à beleza que não dura

Tempos atrás, fui assistir a uma palestra do professor Junito Brandão sobre “As Bacantes”, no recém-inaugurado SESC-Ipiranga. Velhinho, fragilizado por uma cirurgia muito agressiva, ele parecia, contudo, envolvido por um halo de inspiração e entusiasmo, como se tivesse entrado no Hades e de lá retornado com uma braçada de dias luminosos ainda por viver, presenteados pelo casal infernal, Plutão e Perséfone. Por sorte, o auditório ainda não estava terminado. Uma mesa para o palestrante e algumas cadeiras para o público foram arranjadas num grande hall de entrada, que nem sei se existe ou se é fruto da minha memória truncada. No centro do hall, havia um imenso arranjo de flores, elaborado por uma velha amiga e disposto sobre uma grande mesa redonda, feita de rádica reluzente (estou rememorando, o que talvez signifique que esteja também inventando). No início da fala (que foi lindíssima), o professor Junito festejou seu (breve) retorno à vida que tanto amava e disse umas coisas memoráveis, como se estivesse um pouco alto, como se tivesse engolido um deus, naquele caso, o próprio Dioniso, o protagonista da noite. Um pouco ofegante e muito comovido, Junito declarou: “Se vocês pensam que os deuses estão lá em cima, nos andares e salas da administração, estão muito enganados. Os deuses estão em volta daquela mesa, reunidos ao redor das flores. Onde as flores estiverem, os deuses também estarão”.  Desde esse dia, nunca mais deixei de ter flores frescas dentro de casa. Enquanto ainda fazia suas excursões à feira, meu pai, outro velho dionisíaco a seu próprio modo, me trazia ramalhetes de flores do campo ou gérberas ou lisiantos (tinham de ser as flores que ele escolhia), mais uns chorinhos de botões de rosa, para eu colocar junto às fotos da neta. Depois que meu pai parou de ir à feira, eu mesma passei a sortir a casa com flores. Rosinhas francesas foram as minhas prediletas por muito tempo, com suas delicadas penquinhas lembrando decalques vitorianos.  Num dia em que elas estavam especialmente esplendorosas (o que acontecia pouco antes de começarem a despetalar) , pedi ao Edu para fotografá-las.  Agora ofereço a você, leitor, essa visão fugidia da beleza, que a imagem chapada não foi capaz  de eternizar, mesmo porque alguns sentidos ficaram interditados da experiência. Em seu livro “Meditações pagãs” (Vozes), a terapeuta junguiana Ginette Paris escreve um capítulo inteiro sobre Afrodite, a deusa do amor e também da beleza fugaz, que preside os arranjos florais, os bordados, os penteados, os vestidos, as comidas, tudo, enfim, que enfeita o dia para logo depois fenecer. Diversa da beleza majestosa e perene de Apolo, que perdura nos mármores e bronzes, a beleza de Afrodite é tão ou mais importante para a civilização, por tornar nossa vida possível, por se imiscuir nas frestas do concreto armado da realidade como as plantinhas que florescem entre as rachaduras da calçada. Naquela noite distante e inesquecível, o professor Junito me ensinou que os deuses eternos precisam da beleza efêmera da vida cortejada pela morte, para curar-se de tanto poder. A imagem de um deus-bebê, a dormir, tranquilo, numa manjedoura também ressoa essa verdade simbólica, precariamente equilibrada entre muitos pares de opostos. Pouco depois daquela palestra, eu soube que Junito retornara ao Hades… e dessa vez, não houve jeito de negociar. Hoje, minha imagem de ano novo é a foto de um velho bule de café cuja tampo se quebrou, recheado com um buquê de rosinhas francesas.  Ela contém o voto que faço a mim mesma e que estendo aos meus amigos e a todos que me fazem companhia, quando lêem o que escrevo: que em 2011, a gente saiba arranjar lugares belos, pequenos, provisórios, onde a eternidade se sinta, por um momento, convidada a repousar.

Macaca de auditório

Comprei o último CD do Arnaldo Antunes, “Ao vivo lá em casa”. Renovei minha assinatura de macaca de auditório. Há 25 ou 30 anos, eu fazia isso todo fim de ano com o LP do Chico. Não que a gente precise ser persuadida a cada novo lançamento de que o cara é o cara. Mas faz bem saber que ele continua sendo o cara e que vale a pena continuar sendo sua macaca de auditório, apesar dos constrangimentos inerentes à função. Minha entrada nessa categoria do Arnaldo já tem uns 10 anos. Confesso que gostei quando ele resolveu promover uma titanomaquia e inaugurou carreira solo.  Ficou Arnaldo concentrado: uma gota em 10 litros de água para renovar o velho e envelhecer o novo, para aplicar vida na veia da poesia e vice-versa. Esses dias, “Qualquer” grudou nas minhas sinapses e eu fiquei cantando, cantarolando, assobiando aquela melodia mais linda, estilo oriental de desenho animado, inventando pedaços da letra de que eu me esquecia … Passei o vírus para o meu filho, que também saiu assobiando, cantando, cantarolando… Arnaldo é assim: faixa etária não é com ele. O grude já era um aviso: hora de comprar o último CD. Até o próximo sair, esse será o meu predileto do Arnaldo, que está na minha lista das 50 melhores coisas do mundo. Por falar em 50, se você tem 50 ou mais, escute “Envelhecer”, para entender, agradecer e cantar bem alto no chuveiro: “Velho gagá, á-á-á!!”. No penúltimo CD, o arqueo-Arnaldo já tinha retirado algumas preciosidades do fundo da mina desabada do ié-ié-ié. Neste, ele faz um baile de fundo de quintal literal, com roquinhos falsamente toscos, arranjos engraçados, algumas letras ótimas ou que ele faz ficarem ótimas (ouça “Quando você decidir”, de Odair José, e “Vou festejar”, de Jorge Aragão, pra rolar de rir). Também convida uns dinossauros majestosos pra cantar junto (Erasmo e Jorge Benjor, sem falar em Adoniran, desencarnado, com quem ele fecha o CD). Arnaldo sabe fazer aquela reciclagem em que porcaria vira coisa boa e que caracteriza um jeito de ser e de fazer música que é inteligente por natureza, sem precisar posar de semiótico-pernóstico (e não estou me referindo ao Caetano, que pode ser pernóstico e não faz questão nenhuma de ser semiótico). ´”Órguinho”, bateria de garagem, backing vocals hilariantes: se você sabe o que foi o ié-ié-ié, vai se divertir. Se não sabe, vai aprender. Um aparte para a minha favorita:  “As melhores coisas”. Para ouvir rezando, relembrando, sorrindo-e-chorando. Arnaldoooooooooooooo!!! Lindooooooooooooooooooooooo!!!!!!!!!!!

Lucy, Patty, Samantha, Jeannie, Irmã Bertrile…

Seriados

Eram todas minhas amigas, ainda que eu fosse uma pirralha de dez anos de idade e elas, quase sempre, mulheres adultas ou algo parecido. Da decana Lucy, aprendi que ser doidivanas é só o pode nos resguardar da loucura literal de ser dona de casa e mãe. De Patty Duke, aprendi que ser boazinha (c0mo a Patty) é tão importante quanto ser malvadinha (como a Cathy): tudo é apenas uma questão de dose, timing e contexto. De Samantha, aprendi que, ainda que a gente tenha poder para melhorar certas coisas, deve evitar fazê-lo, pelo bem da mediocridade reinante. De Jeannie, aprendi que, se a gente tem poder é para usar e não para engarrafar e arrolhar. De Irmã Bertrile, aprendi que voar é apenas uma questão de combinar baixo peso com acessórios aerodinâmicos e uma boa dose de hiperatividade.

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Elas passavam o tempo todo às voltas com maridos chatos e controladores (Ricky Ricardo, péssimo cantor, que morria de medo do talento da Lucy, e James Stevens, cagão, intelectualmente limitado e, ainda por cima, feio como a peste), amados indecisos, atrapalhados e lindos de morrer (o major Anthony Nelson), vizinhas enxeridas e neuróticas (Ethel, a amiga inseparável de Lucy, e minha predileta, a sra. Gladys Kravitz, com seu impagável marido Abner), superiores paranóicos ou desonestos (o Dr. Bellows e Larry Tate), amigos vitimados pela implacável bondade feminina (Carlos Ramirez, dono do célebre Cassino Carlos a Go Go) ou amigos galinhas meio sociopatas (o major Roger Rilley), mães poderosas e manipuladoras (a maravilhosa Endora, que perseguia o insuportável James sem descanso), figuras femininas opostas complementares (a irmã da Jeannie, cujo nome nem eu mesma lembro, e a super-sexy Serena, prima da Samantha, ambas morenaças e, claro, malvadas, e a prima sapeca da Patty, Cathy, que era a cara e o avesso da primeira). E havia ainda tias(os) velhas(os) divertidas(0s) e infernizantes (tio Arthur, tia Ágata, tia Encanta e a tia Clara, todos da Samantha), etc etc etc…

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A ordem do dia era a seguinte: perder tempo e queimar neurônios na escola; voltar para casa, almoçar e fazer a inútil lição; brincar com as amigas da rua; voltar, tomar banho e assistir seriados até o hora do jantar. Que delícia era frequentar a escola sentimental vespertina dos maravilhosos seriados americanos que passavam na ingênua TV brasileira dos anos 1960!  As imagens do feminino que encontrei neles, ao mesmo tempo estereotípicas e arquetípicas, me ensinaram muitas coisas sobre ser mulher, num mundo em transformação feroz. Na Sessão da Tarde, a gente via e revia clássicos do cinema nos anos de ouro 1940-50: dramalhões como “Imitação da vida”, “Flores do pó”, “Jezabel”, “A malvada”, “Mulhezinhas”. Neles as mulheres eram intensas, um pouco maquiadas e penteadas demais, quase sempre trágicas: Bette Davis, Lana Turner, Jane Wyman, Deborah Kerr, que fizeram as cabeças e corações de nossas mães… Mas quando Vênus despontava no céu, aquelas queridas amigas, tão normais e leves, entravam em cena, para transformar em risadas todas as confusões literais e desagradáveis que nossas famílias viviam no dia a dia e nas quais éramos inadvertidamente arroladas como figurantes. Obrigada, garotas ! Foi muito bom ter sido educada por todas vocês!

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Da inutilidade da escola

Prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Riscos do alcoolismo e tabagismo. Perigos da drogadição. Respeito às diversidades. Sexualidade. Princípios básicos de higiene e nutrição. Iniciação à educação financeira.  Práticas ecológicas cotidianas. Direitos e deveres civis. Técnicas de expressão. Boas maneiras. Comunicação. Compromisso social (na prática, voluntariado). Educação no trânsito. Trabalhos manuais. Toda essa dimensão da cultura voltada para a existência e a co-existência está inapelavelmente exilada da escola. A escola não tem nada a ver com ela. Civilizar, no sentido de tornar humano, é obrigação da família. E como a família, por sua vez, cada vez mais delega essa função para a escola, resta aos garotos boiar no limbo que se estende entre os dois jogadores desse perigoso ping-pong.  Eles sabem logarítmos, mas não reciclam lixo. Conhecem de cor a tabela periódica dos elementos, mas não são capazes de preparar uma refeição simples e nutritiva. Desfiam datas e nomes de pessoas e movimentos em profusão mas, na balada, bebem até passar mal ou entrar em coma. Não são capazes de arrumar o próprio quarto, embora falem, no mínimo, duas línguas estrangeiras. Sabem manejar todo tipo de engenhoca tecnológica, mas não usam camisinha quando transam (e o fazem cada vez mais cedo, por motivos cada vez mais banais). Papagueiam discursos politicamente corretos, mas não se constrangem de agir como feitores com a empregada doméstica. São os deformados bem informados, os gênios de cercadinho, os precoces retardados, os bebês gigantes. São os dissociados, que sabem um monte de coisas, mas não sabem viver. Vêm de famílias “estruturadas”, que os perdem de mimos e se recusam a lhes servir de continentes, até porque educar dá muito trabalho mesmo. Frequentam “boas” escolas, que os entopem com conteúdos que, mais dia, menos dia, serão regurgitados no ENEM e no vestibular. O conhecimento que aprendem na escola serve para a escola. Não se aplica a nenhum outro lugar ou situação, a não ser àquele território exíguo que os muros da escola demarcam (e falo da escola privada, claro, essa perversa redoma). Fora da escola, as coisas que a escola ensina viram fumaça, revelando sua completa inutilidade, sua total dissociação da vida cotidiana. Sobre as questões da vida cotidiana, secundárias, convenhamos, a escola lava as mãos. Vida não é com ela. Só vestibular. E olhe lá. Se a familia jogou a toalha, ela é que não vai recolher. Aulas de sociologia e filosofia cuidam de aplicar algumas demãos de verniz sobre a grossa alvenaria desse pragmatismo. Aulas de educação física, onde ainda havia alguma chance para o corpo calibrar a mente,  ou o ateliê de artes, onde os sentidos ainda faziam sentido, vão sendo substituídos por mais aulas de laboratório. A sociedade espera que a escola seja inútil. Quanto menos consciência ela ativar, tanto melhor para a economia. E como o freguês sempre tem razão, esses burraldos brilhantes seguirão engrossando as estatísticas: de contaminação por DSTs, de obesidade e doenças coronarianas, de dependência de drogas e álcool, de gravidez adolescente, de distúrbios alimentares, de inadimplência, de acidentes automobilísticos fatais previsíveis e evitáveis… Sabem tudo… mas não sabem nada. Muitos deles, porém, conseguirão passar no vestibular. A escola, afinal, fez sua parte.