Em 2012, escrevi esse texto para um TED cujo link está na lista do blog, do lado direito da página. O Facebook o regurgitou ontem e eu me dei conta do quanto ele é importante e do quanto continua valendo, como expressão de um projeto de vida que prossegue e que eu gostaria que chegasse comigo à velhice. Num momento em que ser feminista muitas vezes tem significado estar tomada de histeria ou viver perpetuamente pintada para a guerra, creio que ele pode inspirar algumas boas conversas à antiga, entre parceiros e parceiras, regadas a chá e bolo, talvez a cerveja e mandioca frita, conversas que nos reenviem a nós, seres humanos de todos os sexos possíveis e imagináveis, para o mesmo lugar comum de amor e aceitação da diferença, que é tudo o que precisamos. Como post, ficou longo, mas não precisa ser lido de uma tirada. É até bom ler devagar, aos trechos, mesmo porque a divisão que fiz, com imagens colecionadas ao longo de tantos anos escrevendo este blog, amacia e ilumina o dito. Boa leitura. Bom ano novo. Que 2016 seja, como diz a maldição chinesa, um ano interessante.
GRUPOS DE CORPO E ALMA
Eu queria ver meus filhos crescerem, estar com eles em suas passagens, contar-lhes histórias, ensiná-los a cantar, a ajudar, a gostar de animais e plantas, a comer bem, a preparar e partilhar refeições, a se relacionar. Queria ter tempo para namorar meu marido, ouvi-lo, ver filmes com ele, partilhar com ele o silêncio confortável de ler juntos livros diferentes, e conversar com ele sobre a nossa vida. Como minha mãe, eu tinha um imenso prazer em ficar: cuidar do jardim, da cozinha, da família, manter aceso o fogo no centro da casa em honra à poderosa e modesta Hestia, deusa do lar. Diferentemente de minha mãe, porém, eu podia sair e viver a vida no grande mundo, praticar minha vocação, circular com desenvoltura no espaço público. Algumas vezes, porém, o prazer de ficar, que eu partilhava com minha linhagem feminina, me deixava constrangida no grande mundo lá fora. Quando deixei a sala de aula, há alguns anos, o meu lado que sabia ficar me serviu de âncora. Saber ficar impediu que eu perdesse a sensação de realidade que vinha do meu papel profissional. Na época, eu vivia um momento de intensa metamorfose e as metamorfoses costumam nos dar essa sensação de perda da própria realidade. Formas externas com as quais eu me identificava estavam desaparecendo, e eu ainda não sabia direito como haveria de sair daquela experiência. A gente nunca sabe, mas às vezes pensa que sabe. Minha sintonia com meu corpo e minha alma me garantiu um razoável conforto para fluir na correnteza da vida que mudava. Eu tinha as histórias, as memórias de família, os estudos de assuntos que ecoavam a minha existência, a escrita, os mitos, a arte, a literatura, o jardim, as imagens nas quais eu me espelhava e que me diziam tudo o que eu precisava saber sobre qual era o meu valor. Minha intuição me dizia que o melhor estava por vir, ainda que eu não fizesse a menor ideia do que estava por vir. Então o melhor veio.
Minha experiência com os grupos de corpo e alma começou com um laço muito íntimo e antigo: a aliança mítica das irmãs. Em 2008, minha irmã voltou de uma temporada de três anos no México e me convidou para embarcar com ela numa aventura. Minha irmã é artista plástica e arte-educadora. Ela queria montar um lugar para cultivar as almas das nossas crianças, massacradas por uma educação escolar em que o corpo, as emoções e a imaginação simplesmente não interessam, só atrapalham. Eu sabia disso, porque vinha de quase 30 anos dando aulas, nadando contra a correnteza de transformar adolescentes curiosos e interessantes em autômatos tarefeiros, insensíveis e consumistas. Como não tínhamos cacife para bancar o projeto sozinhas, convidamos outras mulheres que tinham projetos parecidos com o nosso, e formamos o primeiro grupo de corpo e alma: as “ocuilis” (palavra que minha irmã trouxe do México, do velho idioma “náuatle”, e que quer dizer “cobra”, um bicho que troca de pele e simboliza o eterno que sabe mudar). Começamos nosso ateliê depois de comemorar a festa do dia dos mortos. Foi quando meu casulo começou a se abrir e a revelar minha nova forma. No início, eu tinha pensado em coordenar grupos de leitura. Era um projeto mais intelectual, como se, saindo novamente para o mundo, eu precisasse ser apenas racional. Para minha sorte, as mulheres que aderiram à ideia propuseram leituras não literárias, leituras de conhecimento profundo de si, divergentes, analógicas e um bocado irracionais também, textos de mulheres fora da curva, destinados a mulheres fora da curva: contos de fadas, mitos, metáforas. Eram mulheres que tinham desenvolvido muito sua capacidade intelectual e agora queriam se tornar sábias.
Assim nasceram as matilhas de leitura, grupos de mulheres que começaram lendo , juntas, o clássico “Mulheres que correm com os lobos”, da analista junguiana e contadora de histórias Clarissa Pinkola Estés, de onde saiu a metáfora que nos define. Não é coisa nova, muitas mulheres já faziam isso antes de nós. Mas é único, porque fazemos isso de um jeito completamente nosso. Como não podíamos mais ser alcateias, porque já estávamos bem domesticadas, seríamos então matilhas em busca do DNA do feminino selvagem, a fonte de energia vital que continua a se renovar pela vida afora, de que falam os mitos e as velhas histórias tradicionais. As matilhas são grupos de corpo e alma. Nelas as mulheres se reúnem para compartilhar a experiência de ser e estar ao redor do seu próprio fogo criativo, onde são modeladas outras formas de ser e de viver além daquelas que a sociedade aprova. Cultivar a alma em grupo era o nosso objetivo embora, no início, nem soubéssemos disso. Juntas, aprendemos que, quando bem cuidada, a alma secreta os significados que umedecem e fertilizam a vida, fazendo brotar plantas novas em velhos jardins. Aprendemos também que o corpo se transforma criativamente quando a alma está preparada para lhe ensinar como se faz. Aprendemos que a alma é alquimista e o corpo, seu laboratório. Quando um não colabora, o outro adoece. Um não pode viver sem o outro. Aprendemos que o corpo e a alma equilibram a razão lógica e a tornam menos abstrata, prepotente e fria. Somos mulheres que estão reaprendendo a ficar. Cultivar a alma em grupo não tem segredo, só mistério, como canta Marisa Monte. Começa com a gente encontrando a trilha de migalhas de pão que nos leva à casa da bruxa iniciadora de princesas e mendigas , a velha sábia que vai nos iniciar nesse mistério. É preciso olhar para o chão para ver migalhas.
No chão, estão gravadas nossas pegadas antropológicas. Saber de onde viemos é saber para onde vamos, porque a vida é um círculo, não uma linha reta. Em meio à aparência de novidade que o mundo quer nos impingir, seguimos juntas atrás do que é arcaico, do significado mais profundo e escondido de ser gente, daquela natureza real que não nos deixa ficar invisíveis só porque
envelhecemos. Aprendemos que só a conexão com o arcaico é capaz de convocar o novo verdadeiro. Como disse uma vez o Gerald Thomas, “quem não sabe o que veio antes, não sabe seguir adiante”.
Um grupo de corpo e alma é uma comunidade de iniciação onde aprendemos sobre o lado desvalorizado de nossa natureza feminina e o reparamos da melhor maneira possível: primeiro metaforicamente e depois, na prática. Queremos reinserir no cotidiano as qualidades simples, encantadoras, criativas, terapêuticas, conciliadoras, fecundantes, acolhedoras, ferozes quando necessário, e que espalham ao redor de si e à sua passagem as sementes da genuína beleza, a que nasce do amor e do sentido. Para nós, uma lista de fazeres que cultivam a alma precisa incluir: narrar e ouvir histórias, falar da vida, escutar atentamente, ler e comentar livros e filmes e obras de arte e encontros poderosos, partilhar assuntos importantes que apenas parecem insignificantes, estudar e jogar tarô, chorar de vez em quando, chorar de rir sempre, recuperar velhas prendas domésticas, rememorar as vidas de nossas mães e avós, trocar receitas, invocar imagens de deusas e antepassadas míticas, comemorar festas normais, como aniversários, e esquisitas, como o Dia dos Mortos… Ultimamente algumas lobas vêm se reunindo em outras formações, para cultivar a alma nos ateliês de arte que minha irmã coordena. Faço parte de um deles e posso dizer: é uma experiência impressionante de despertar da criatividade profunda e de cura (para quem sente que precisa de cura, claro).
A experiência dos grupos de corpo e alma, as matilhas que continuam a se encontrar semanalmente, anos passados, sempre abertas a novas lobas, derivou, a seu tempo, para a Internet. Cultivar a alma na rede é uma coisa ótima e que muita gente já faz. Eu também resolvi fazer, escrevendo o blog da Mulher-Esqueleto. Num grupo de corpo e alma, a gente pode correr o risco de ser quem é. Não precisa dissimular juventude muito menos felicidade no atacado, não tem uma obrigação com o sucesso que esse mundo besta consagra. Podemos expor nossas dores e feridas protegidas por um continente que nos envolve, apoia e convence de que temos resiliência suficiente para superar. Num grupo de corpo e alma, a sensação de ser real é concreta. Sentir-se real não é coisa dada, a gente não nasce com ela, ainda mais numa cultura em que a gente é premiado por se transformar em abstração ambulante. É uma coisa para ser fiada todos os dias, na velha roca da vida, enquanto buscamos nossos elos com o mundo, a inteireza que depende de um pacto consciente com o outro. Só na relação com o outro somos reais, o outro humano e o outro não humano, esse grande Outro que é o mundo. Ninguém vai negar o quão importante foi aprender a partir. Agora precisamos reaprender a ficar. E ficar é verbo de ligação, como bem lembrou minha amiga-loba Regina. Os grupos de corpo e alma nos ajudam nessa jornada de volta para casa, à aurora dos tempos, quando Deus era mulher.
Eliana, Novembro de 2012