Emily e Paterson: dois poetas e um mistério

Duas idas ao cinema num único fim de semana. Luxo. Fora dois filmes legais na Netflix, “Bem vindos a Marli-Gomon” e “Uma viagem interior”, despretensiosos, tocantes, profundos. No cinema, a poesia, seu eros, sua pulsão de morte. “A Quiet Passion”, de Terence Davies, um recorte da vida da poeta Emily Dickinson, que trocou a intolerável incompletude da realidade (até mesmo a do seu pobre corpo) pela perfeição imperiosa da poesia. “Paterson”, de Jim Jarmush, uma semana na vida de Paterson, poeta e motorista de ônibus, homônimo de uma cidade feia. E também repleta de uma beleza fugidia, esquiva que, para ser vista, precisa de olhos atentos, cada vez mais raros num mundo de cegos virtuais. Nos limites estreitos de seu cotidiano, Paterson  bebe direto na fonte da poesia. Já Emily mora nela, em sua voragem, em seu fulgor. Costura caderninhos como uma adolescente e abandona até mesmo os passeios no jardim, para punir a vida de não ser impecável como sua obra. Para Emily, “navegar é preciso, viver não é preciso”. Paterson tem um caderno só, e corre o risco. Para Paterson, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Os dois me lembram Pessoa, cada qual do seu jeito. Emily escreve no meio da noite, na mesa da sala, à luz de um lampião, com autorização paterna. Paterson escreve em cima do volante e no porão, mas principalmente na cabeça. Escreve não menos confinado que Emily, embora livre para transitar. Escrava de uma poesia perfeita e de um mundo puritano e claustrofóbico, Emily não consegue se abrir para o amor exógeno, a não ser como fantasia. Exigente, rígida, reclusa no universo circunscrito pelas paredes da casa familiar, ela exclui o mundo exterior de sua experiência. No entanto, esse mundo ressurge, glorificado, nos poemas dela. Paterson é todo amor e encantamento para com as miudezas que refletem o brilho de seu garimpo interno. Ele ama tudo, as fábricas desmanteladas, as ruas tomadas de mato, os passageiros banais e suas conversas, o percurso diariamente repetido, a pé até a garagem e depois, rodando pela cidade em seu ônibus, os recortes na parede do bar aonde toma a cervejinha de todas as noites… Paterson só não ama o buldogue Marvin, com quem tem de dividir a atenção de Laura, sua deusa volúvel e distraída. Paterson circula, risca cruzamentos, pula de um polo a outro, sente compaixão do pobre Donny, sempre à mercê dos azares da existência, encontra poetas incomuns como ele. Na vida, Emily estagna feito sua Rã, só que sem as palmas da Lama, que ficam para a inatingível posteridade. De cada um, a poesia exige um sacrifício igualmente incomensurável. O de Paterson, a vida abranda, até porque ele se volta para ela em busca de consolo. Para Emily, resta o holocausto. A poesia devora sua vida por completo.

PS – Nota zero para Cannes, o Globo de Ouro e o Oscar, que ignoraram essas duas pequenas maravilhas não engajadas em militâncias raivosas. Não honrar, com uma menção que seja, o trabalho primoroso de Cynthia Nixon (Emily) e Adam Driver (Paterson) é, no mínimo, melancólico.