No templo da deusa-gata

Zelda Fitzgerald, nossa gata pitbull

Manhã ensolarada de sábado na clínica veterinária Sr. Gato, em Pinheiros. Logo no corredor de entrada, dezenas de gatos cochilam ao sol, escarrapachados em minipufes e minidivãs, decorando o ambiente com sua misteriosa e elástica beleza. E também na beirada de uma janela, sob os móveis de jardim, dentro do tubo de um brinquedo da gatolândia, aonde quer que você olhe, lá estarão eles. Ao lado da porta, sobre uma mesinha de canto, um bolo de chocolate se oferece para ser cutucado pelos devotos circulantes. O bolo fica lá, paciente feito uma oferenda, um comitê de boas vindas meio destroçado e muito tentador. Os gatos nem ligam para ele. Trancada na sua caixinha, nossa pequenina fera, Zelda, ronca e bufa em meio à confusão de feromônios, enquanto espera para ser atendida.  Em volta dela, naquela habitual curiosidade displicente dos felinos, os moradores do templo evoluem graciosamente, oferecendo à gente, que já está lá porque gosta deles, um espetáculo de refinamento que só mesmo Pablo Neruda para descrever. Gatos multicoloridos e mulheres de branco estão por toda parte. A maioral entre elas, suma-sacerdotisa do pequeno templo de Bastet, a deusinha-gata do velho Egito, veste-se de preto, como seria de se esperar.  Para ornar, dois pretinhos básicos, viralatas idênticos, dormem enrodilhados um no outro, enfiados numa prateleira do petshop. Parecem um só gatão enorme, de duas cabeças. A fêmea estampada, espécie de catálogo de amostras de DNAs, exibe sua diversidade genética sobre o balcão da recepção. Uma branquinha de vestido de veludo plush cor de rosa posa, lânguida, sobre um minisofá, com a desenvoltura sensual das modelos de Matisse. Na sala interna, outra gata branca, delicada e suave, quase um filhote, testemunha a selvageria dos homens versus a humanidade dos bichos: alguém jogou ácido sobre a carinha miúda. Com dois buracos rosados no lugar dos olhos corroídos, ela se recupera para ir morar na casa da suma-sacerdotisa. Meiga, resiliente, esfrega-se na minha mão e me dá leves lambidinhas. A modelo de Matisse também tem sua história triste: os lixeiros a resgataram de um saco muito bem amarrado, no qual ela havia sido enfiada para morrer. Teve sorte, mas sente muito frio. Por isso, além do vestido rosa, tem também um casaco de gola de pele e um boné. Os dois irmãos enormes, viralatas lindos e um tanto velhuscos, foram largados lá para serem sacrificados por uma senhora distinta, que os deixava dormir na cama mas, de repente, se enfarou deles. O branco e preto recusa-se a comer e toma Prozac, de tanta tristeza. A suma-sacerdotisa resolveu o problema com alimentação parenteral, mas conta que alguém há de se apaixonar por ele, o que não seria dificil, se as pessoas não tivessem tanto receio de amar, criar vínculos e assumir responsabilidades por outros seres vivos. Uma magnífica gata branca de olhos azuis e densa cauda angorá também espera por um dono que se encante com sua beleza de personagem de conto de fadas. “Nós já fomos deuses no Egito. E você? Quem é?”, eles nos perguntam, com aqueles olhos fixos que parecem enxergar algo que nós mesmos não somos capazes de ver. As lendas do patriarcado convenceram nossa cultura de que os gatos são bichos traiçoeiros, interesseiros,  de parte com o diabo, perigosamente independentes, que gostam da casa e não dos donos. Uma manhã de sábado na clínica Sr. Gato, em Pinheiros, pode rapidamente dissolver esses e outros mal entendidos. Que o destino ainda te presenteie com um adorável gato viralatas, caro leitor. Isso é uma das melhores coisas que posso lhe desejar.

Salve, preguiça!

Uma espreguiçadela arquetípica

Andei com preguiça de escrever no blog. Gosto muito de escrever no blog, mas também gosto de sentir preguiça. Não abuso nem de um nem de outro, porque se a preguiça e a escrita virarem coisas banais, acabarão perdendo o valor. Bem vivida, a preguiça pode ser tão criativa quanto a escrita. Sentir preguiça é mais ou menos como estar grávida por uma horinha ou duas. Este post é filho da minha última preguiça. Este e os próximos que pretendo escrever em seguida. Tudo bem que o clichê da boa preguiça já foi lindamente explorado por Michel de Montaigne, Dorival Caymmi, Domenico de Masi, Ariano Suassuna, Caetano, Gil, entre outros preguiçosos mais ou menos interessantes. Eu insisto, porém, que certos clichês são, na verdade, falsos clichês. Embora a mente racional os considere assim, eles ainda não foram devidamente experimentados, tão somente debatidos até o desgaste e abandonados no arquivo morto do plano mental. Ainda há muito que viver, na nossa cultura compulsivo-obsessiva, em termos de preguiça. A igreja cristã considera a preguiça um pecado. Muito natural. Afinal, num sistema em que o corpo e a alma foram dissociados e ainda são considerados como realidades antagônicas, a preguiça vira uma transgressão incontornável, mesmo porque, entregues a ela, percebemos que o corpo e a alma são inseparáveis. Na preguiça, a segunda convence o primeiro a fruir a si mesmo e ao mundo sem ter de ir a um restaurante ou cinema, nem botar um CD pra tocar, nem dar uma trepada, nem investigar a geladeira em busca de sorvete ou vinho, nem ler, nem escrever… A preguiça não precisa de aditivos. Ela produz sua própria química, seu próprio combustível. A preguiça é um daqueles estados em que nossa alma é feita, como diz James Hillman. O corpo responde a ela ficando pesado e sonolento quando, na verdade, está ainda mais aberto e disponível às coisas que a alma lhe sussura e revela. Os sentidos se aguçam, a gente ouve o próprio coração bater, às vezes os ouvidos zumbem, sem incômodo, com um zumbido que, suspeito eu, deve ser um eco da música das esferas. Por isso uma bela preguiça e uma gravidez são tão semelhantes. Em ambas, algo está sendo gestado na penumbra, na aparente imobilidade fervilhante de possíveis. Parece que se está vivendo em câmera lenta, contudo se está vivendo apenas, mas muito minuciosamente. Na preguiça, a alma convida o corpo a perceber o que quase sempre esteve lá (no mundo) e cá (em nós), e que raramente percebemos, “escravos cardíacos das estrelas” que somos, como disse Fernando Pessoa. É que a preguiça instala uma espécie de torpor no espírito. Ela manda o espírito dormir, como uma mãe manda um menino tirar uma soneca à tarde, porque não aguenta mais suas traquinagens. Natural então que, na preguiça, a gente baixe, a pressão baixe, as abstrações baixem e virem, todas, sensações. Como é macio este travesseiro. Como é linda aquela trepadeira indomável que eu queria cortar, mas agora não quero mais. Como é bom este cheiro de café que vem da casa do vizinho. Como gosto daquela gravura do Egon Schielle de que acabo de me lembrar, mas que não vou conferir, porque estou com preguiça, o que não me impede de reconstruir sua imagem de memória, num devaneio plástico. Minha preguiça de escrever aqui talvez seja uma resposta automática à mensagem que recebi da WordPress no começo de 2011, dizendo que meu blog é muito produtivo, movimentado etc etc. Na hora em que li, até fiquei orgulhosa. Depois, me deu uma baita leseira. Agora estou de volta, até porque o menino traquinas acordou e acaba de escapar para o quintal. Corro atrás dele, com o corpo e a alma mais pacientes, mais sincronizados. Até porque o menino-espírito é do chifre furado e precisa de um continente firme e flexível para nem ficar à deriva, nem virar um fundamentalista pentelho.  Sim, a preguiça é um paradoxo, ou um oxímoro, se você preferir. Para entendê-la sem vivê-la, só mesmo observando a soneca diurna de um gato, misto de entrega absoluta com a mais absoluta prontidão.