Miasma

miasma

Tento estabelecer uma relação de proporção entre o dolorido desconforto com a falta de sentido que me envolve em determinadas circunstâncias da vida, e a dor coletiva, vasta, arrasadora, dilacerante da alma do mundo que acomete as vítimas de um genocídio, por exemplo, quando a falta de sentido atinge o zênite e o mundo inteiro se desconjunta. Não tem termo de comparação, claro. Mesmo assim, o miasma da falta de sentido que empesteia o cotidiano miúdo  não se deixa encobrir por fedores mais concretos como, por exemplo, o do rio Pinheiros em dias de grande calor. Os gregos falavam em miasma quando um membro da polis cometia um crime e permanecia impune, contaminando assim, com seu ato desprezível, toda a comunidade que não havia se engajado na reparação. Aquele algo de podre a que Hamlet se referiu, o miasma era, contudo, apenas o efeito de uma causa que clamava para ser exposta à luz da consciência coletiva. Como efeito, ele se manifestava sobre a comunidade na forma de peste, fome, guerra, loucura, entre outras mensagens politicamente incorretas enviadas pelos deuses que, desgostosos com o absurdo da situação, clamavam por justiça dos homens aos homens. Pensando em termos de miasma, dá para entender a pressa e a eficácia da Alemanha em levar a julgamento e condenar rapidamente os carrascos nazistas em Nuremberg. Dá para entender também o pântano no qual a democracia brasileira, e a latino-americana, com poucas exceções, continua a chafurdar (nosso miasma remonta à colonização), um brejo onde a vaca atolou aparentemente sem remédio e que se manifesta de muitas formas, sem iniciativa de reparação possível fora das manobras eleitoreiras habituais, todas, no fundo, em proveito dos que ocupam o poder. Ou talvez o miasma seja mesmo um subproduto daquela porção incorrigível de nossa sombra individual e coletiva, perpetuamente ocupada em produzir o mal puro e simples, o mal banal, como o chamou Hannah Arendt, já que me lembrei de Nuremberg. Nossa porção que milênios de cristianismo ajudaram apenas a escamotear, mas não a confrontar no tribunal de nossa boa consciência, obnubilada pelas ideologias políticas e religiosas. Nosso gêmeo encruado, o monstrinho que vegeta nos desvãos de nossa natureza e que é diabólico apenas porque se dedica a nos manter rachados ao meio, contra todas as oportunidades de integração que a vida oferece. Ultimamente estamos às voltas com a polarização oposta, tão perversa quanto: a banalidade do bem, em que bandidos e assassinos nadam de braçada num mar de direitos do qual suas vítimas estão impedidas de se aproximar. Claro que lidar com a imagem do miasma pressupõe uma capacidade óbvia de imaginar, coisa que pouquíssima gente sabe fazer hoje em dia, à pouco honrosa exceção dos delirantes patológicos e usuários de drogas alucinógenas. O miasma baixa quando o sentido se ausenta e nada é feito para recuperá-lo. Daí esse desconforto de que eu falava lá em cima. Estou, no momento, tentando reparar as causas de um miasma, ainda que apenas subjetivamente e por escrito. Um miasma de família. Estou, no momento, sob o efeito de um miasma que não posso dissipar porque não estou implicada em suas causas. Fui envolvida por ele inadvertidamente, como acontece quando desempenhamos o papel do inocente capturado no vórtice da loucura alheia, em que o alien é um outro que acreditávamos conhecer e amar. A banalidade do bem ataca quando abrimos nosso coração para a pessoa errada, certos de que nossa generosidade só pode gerar mais generosidade em troca. Ledo engano. Pior é perceber que caímos na armadilha de nosso próprio bom-mocismo, como se Poliana tivesse se aliado a mr. Hyde para armar essa tocaia. O complô do inconsciente, como diria o Rafael Lopez-Pedraza. Quando a loucura está no poder, o amor cumpre pena.