Natal

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Para as matilhas, com amor.

Tenho horror ao natal. Acho uma festa brega, vazia, redundante, tola, desalmada, superficial, convencional, hipócrita. Para começo de conversa, não vejo graça nenhuma em comemorar o aniversário de Mitra, um deus persa da guerra adorado por soldados e gente belicosa, mais chegada em Marte do que em Vênus, na velha Roma dos césares. Dia 25-12 é o dia dele, do retorno do Sol Invicto, caso o padre da sua paróquia ou o pastor da sua congregação ainda não tenham te contado (na verdade, a maioria deles sequer foi informada disso). Os patriarcas da igreja decidiram surrupiar a data para nela comemorar o nascimento de Jesus só porque Mitra era um cara muito popular e o povo costuma ser pra lá de distraído em questões de pilhagem do imaginário. Desvestir um deus para vestir outro sempre foi moeda corrente na velha Roma dos papas. Fora o fato deveras convincente de que nem aniversário de Jesus o natal é, ele ainda tem o demérito de ser a maior festa do grande deus mercado, essa potestade onisciente, onipotente e onipresente, a mais recente versão de monoteísmo a que fomos submetidos e também a mais poderosa. O grande deus mercado nos ensinou que o natal é a data na qual podemos compensar as pessoas que amamos pela atenção e o tempo, a relação, enfim, com a qual não fomos capazes de presenteá-las ao longo do ano. Também nos ensinou que devemos aquecer a economia adquirindo bugigangas de todo tipo para distribuir a pessoas com quem não nos relacionamos ou de quem nem sequer gostamos, mas de cujas graças dependemos, para que elas continuem a nos tolerar por mais um ano. Isso sem falar na vulgaridade dos natais institucionais, com sua cafonice obsequiosa. Grandiosa purgação de culpas coletivas, mediadas por quinquilharias descartáveis, espelhinhos e miçangas mais ou menos vistosas, com as quais pretendemos preencher os espaços do sentimento verdadeiro, positivo e negativo, expresso com o coração, as mãos, a voz e o desejo, no lugar do cartão de crédito. Sempre que o natal se aproxima, com sua publicidade piegas e cretina, seus monstruosos congestionamentos e sua voraz demência consumista, meu humor se ensombrece um pouco e minha alma fica ligeiramente aflita.

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Levo alguns dias para me recompor e redescobrir, ano após ano que, sim, há uma luzinha de natal genuína, brilhando para além da extensa manada que entope o cenário à frente. Só que a gente precisa nadar contra a correnteza para chegar até ela, precisa cruzar a arrebentação aonde geralmente ficamos presos, rodopiando em círculos, comprando coisas que não queremos, sendo pessoas que não desejamos ser, aprisionados nas órbitas do alheio, vibrando na energia errática do coletivo desembestado. Tenho um sonho secreto (que acabo de revelar) de algum dia passar o natal numa tribo animista na Austrália ou numa comunidade xintoísta em Hiroshima. Quero rememorar a metáfora do nascimento de Jesus em meio a outras metáforas cujos significados parecem ressoá-la misteriosamente, mergulhada em outros imaginários, comendo outras comidas (ou jejuando, quem sabe), ouvindo outras invocações a outros deuses, porém convocando sempre a mesma energia: a energia do amor que era, enfim, a única mensagem que Jesus veio realmente trazer, defenestrada, esquecida e submersa por dogmas e doutrinas, tal e qual o pobre Mitra. Enquanto isso não acontece, quero continuar a me reunir com minha tribo da alma em pequenos festejos repletos de eros e sentido, ágapes delicados nos quais trocamos oferendas de comidas que gostamos de fazer, damos presentes que encontramos em casa mesmo, entre coisas que queremos fazer circular, falamos do passado e do futuro com os pés plantados no presente, nossas almas pessoais mergulhadas no leite nutritivo da Anima Mundi. Nesses dias paradoxais que antecedem a paródia do natal, as dádivas autênticas que me chegam dos outros, visíveis ou não, eu as recebo com uma reverência pela vida ser como ela é, esse chiaroscuro de Caravaggio, esse subúrbio de Nelson Rodrigues, tudo sórdido, tudo esplêndido, igualzinho ao natal.

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P.S. – As imagens que ilustram este post são de duas cenas e do poster do filme “A vida de Brian”, dos maravilhosos doidos do grupo inglês Monty Python. Meu filme favorito de natal. Fora a balbúrdia que os caras fazem, não há crítica mais consistente e profunda ao cristianismo institucional. Lava a minha alma dos clichês e da idiotia reinantes.

6 Comentários (+adicionar seu?)

  1. Cristiane Marino - Mulheres em Círculo
    nov 27, 2014 @ 18:51:58

    Adorei seu texto! Falou exatamente o que penso…
    Acho que somos da mesma tribo.
    Bjs querida

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  2. ana maria bacchi ribeiro de oliveira
    nov 28, 2014 @ 09:01:20

    Querida,
    Como sempre, verbalizando, e muito bem, aquilo que levamos em nosso coração. O Natal também me incita sentimentos contraditórios. Não gosto nem da comédia religiosa e muito menos da barra forçada dos encontros, reuniões, etc., etc., etc. de final de ano!!! Enfim, a onda nos engole e nos leva até a rebentação queiramos ou não. E saímos cansadas, mas aliviadas de tudo já ter terminado e podermos voltar a nossa verdade cotidiana. Um beijo grande e um FELIZ NATAL (SIC).

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  3. duboc9
    nov 29, 2014 @ 20:51:11

    Essa crônica deveria ser distribuída na entrada de todas as escolas públicas privadas no último dia de aula. Belo conhecimento desmistificador seria um lindo presente do Santa Claus. Abraço Luiz

    Date: Thu, 27 Nov 2014 17:02:11 +0000 To: duboc9@hotmail.com

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  4. Maria Cecília Sanchez Teixeira
    dez 15, 2014 @ 17:30:38

    Concordo com você Eli, a visão mercantilista e produtivista do patriarcado substituindo cada vez mais o “espírito do natal”. Se é que este existiu um dia. Acho que antigamente só se trocava menos presentes. Hoje as crianças ganham cada vez mais presentes e ficam cada vez mais insatisfeitas. Mas, acho que, podemos tentar fazer um natal às avessas, ir na contramão. Não é isso que temos feito todos esses anos na matilha e no ateliê: encontrar novos modos de realizar a nossa jornada nesse mundo maluco onde vivemos?

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  5. elianaatihe
    dez 13, 2016 @ 11:40:20

    Republicou isso em Mulher-Esqueletoe comentado:

    Cansada demais para escrever coisas novas, reitero este post para o Natal de 2016. Continua valendo! Beijos.

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