PRIMEIRA DOSE
Pensando em vacina, me lembrei de que nasci no mesmo ano em que começaram os ensaios clínicos da Sabin em seres humanos: 1957. A gotinha que salva contudo não chegou a tempo de salvar alguns colegas do grupo escolar onde eu fingia estudar e um ou outro companheiro de brincadeiras na rua. Quando a gente convive, na infância, com crianças sequeladas de poliomielite, é muito difícil entender o que se passa na cachola de um ativista antivacina. Testemunhar a aterrisagem de terraplanistas neste planeta comprovadamente redondo pode ser de alguma ajuda. Afinal sempre podemos piorar. E pioramos. Segui pela vida tomando as vacinas que foram sendo inventadas, incluindo uma cubana contra meningite menigocóccica, meio suspeita. Mas como eram os tempos de ditadura militar, pode ser que a dita suspeição fosse devida a um caso precoce de fake news. Como as meninas Aloia passamos ilesas pelo surto dos anos 1970, a vacina de Fidel deve ter funcionado afinal. Meus sensatos pais, embora fossem pessoas muito simples, nunca se revoltaram contra as vacinas, graças a Deus. Tinham visto coisas horríveis demais em suas infâncias e adolescências para arriscar nos expor a tuberculose, varíola, difteria, tétano e outras doenças que haviam matado ou marcado tanta gente conhecida deles.
Mudando de pato para ganso, hoje de manhã me dei conta de uma vacina que eu nem sabia que tomei, mas que me imunizou contra outro tipo de contaminação menos explícita porque não física, embora não menos debilitante. Quero dizer que ninguém me vacinou com ela em sã consciência, ou talvez até tenha vacinado em sã inconsciência, o que pode ter potencializado seu efeito protetor. O imunizante foram os livros, que nunca me foram negados, menos ainda revistos ou censurados. Entre eles, havia os de Monteiro Lobato, um amor que não tem mais permissão para dizer o seu nome, porque os que não o leram o julgaram e condenaram e os que tiveram a infância habitada e encantada por ele (e que são antirracistas juramentados) se pelam de medo de defendê-lo. Gente que não aguenta a tensão entre os opostos costuma correr para debaixo das saias da Vovó Hipocrisia sempre que um paradoxo os confronta. Mitologia grega pela via de ML foi minha “imunização irracional”, uma inversão de minha inteira responsabilidade do nome daquela seita que tentou enquadrar o Tim Maia num certo “caminho do bem”. E que ele acabou detonando. Salve, Tim!
Descobri hoje que foi meu pai quem começou meu processo de imunização irracional. Ele me aplicou a primeira dose, uma espécie de vacina Salk (essa eu também tomei), preparando meu sistema imune psíquico para alguns dentre os inúmeros agentes patogênicos que já estavam lá quando eu nasci e os que ainda haveriam de chegar. Para começar, meu pai resistiu bravamente, como um estóico selvagem, a todas as investidas da religião de minha mãe para salvá-lo e, desse modo, garantir uma suíte de casal no resort do céu. Para sorte nossa, ele se recusou a replicar a narrativa dela. Graças à respeitosa recusa dele em se enquadrar, pudemos ter algum espaço para confrontar o decreto baixado das alturas celestes. Naquele planeta muito, muito distante onde a gente vivia então, estar num “casamento misto” era tipo um gafanhoto ser casado com um espanador de pó. Minha mãe, tadinha, tinha uma crença ingênua e positivista de que a conversão de meu pai iria transformá-lo num marido do tipo que se pode exibir às amigas da sociedade de senhoras (meu pai era lindo), que usa terno e gravata aos domingos, leva uma bíblia debaixo do braço e canta no coro da igreja (envergando uma beca verde por cima do terno e usando sua voz de barítono para entoar aleluias…). Meu pai, que usava terno de segunda a sexta e se recusava a botar gravata aos sábados e domingos (casual days em que ele trabalhava feito louco), agiu com a serenidade de um Gandhi, coisa que não ornava com seu sangue calabrês. Ele disse não e continuou dizendo não, com elegância e dignidade, por décadas a fio, até que minha mãe desistiu da empreitada.
Eu sentia um grande constrangimento pelo assédio proselitista que meu pai sofria, pressionado a aceitar Jesus e ser arrolado no seu rebanho de homens de terno e beca, o que não fazia o menor sentido, considerando que Jesus usava túnicas brancas longas e pregueadas como peplos gregos, com faixas de cores vivas sobrepostas, como nos filmes bíblicos de Hollywood e nas figurinhas de flanelógrafo da escola dominical. Eventualmente a gente recebia em casa certas visitas engajadas em resgatar a alma perdida de meu pai. Me incomodava muitíssimo, mesmo eu sendo uma menina, que esses arroubos missionários acontecessem nos muito raros momentos de folga dele. Me incomodava ainda mais que minha mãe não participasse da conversa, ela que me parecia ser a maior interessada na salvação da alma dele. Mais tarde, descobri que ela também se constrangia. E como era chata aquela conversa, sem nenhuma espontaneidade, burocrática, pontuada de citações bíblicas, mais ou menos apimentada com ameaças veladas de passar uma eternidade fritando no fogo do inferno. Aliás aquilo não era uma conversa. Era um mini-sermão tedioso e repetitivo. Raros foram os visitantes que quiseram saber de verdade quem era meu pai, o que ele fazia, que problemas tremendos ele tinha de enfrentar todos os dias.
Havia as exceções, sempre há. O teste de meu pai era oferecer um cálice de licor ou vinho do porto à visita, essa pessoa que, além de visar a salvação da alma dele, também pretendia engordar sua conta na poupança das almas e assim, quem sabe, fazer um up-grade no próprio plano de milhagem. A maioria recusava, afetando uma pureza educadamente enojada, alguns de olho comprido no cálice de meu pai (porque, naquela situação, só bebendo). Em geral os catequistas tomavam um café, mesmo porque não eram adventistas. Um ou outro aceitava o porto. E eram justamente esses que acabavam abandonando o script, mesmo porque meu pai os tinha enredado e virado o jogo a seu favor. Era quando eles, o selvagem e o missionário, se tornavam amigos. Com o tempo, esses amigos passaram a vir almoçar em casa aos domingos, quando tomavam vinho escondido (de Deus?), como se fossem garotos de 8 anos. Meu pai desempenhava o papel de Mefisto. Certa vez, uma diaconisa emérita (uma velha magnífica que mandava na própria vida e até dava garrafas de vinho de presente a ele) estava num dos concorridos almoços dominicais de nossa casa. Um desses amigos incidentais chegou, devidamente acompanhado de sua formidável esposa-dragão, e meu pai lhe ofereceu uma taça de vinho. Ele recusou: como podia beber, ainda mais na frente daquela lenda viva do protestantismo histórico? Como o dragão iria reagir, ele já sabia, é claro. Então meu pai ofereceu uma taça à lenda, que a aceitou com entusiasmo. Ele piscou para o ex-catequista, agora seu amigo, antes de lhe oferecer outra taça. Naquele dia glorioso, até mesmo o dragão bebeu.