Ler e escrever e cozinhar, tudo ao mesmo tempo

bolo de laranja

Carta que enviei para a Nina Horta, colunista da Folha de São Paulo, e que ela generosamente publicou no blog dela, link ao lado:

Prezada Nina,

Li, como faço sempre, sua coluna adorável do dia 15 de janeiro. Não compro a Folha e não tenho muito saco de ler jornal na tela, aliás não tenho muito saco para ler jornal ponto. Mas meu pai me repassa o caderno Comida, enfiado numa cesta, ao lado do bolo de laranja quentinho que a empregada dele, a Tania, faz toda semana para nós, aqui de casa. Andamos meio enjoados de comer o mesmo bolo semana após semana (meu pai é um cara obsessivo), mas se trata de uma oferenda, então a gente não olha os dentes do bolo e o reparte com todo mundo da rua: os guardinhas, os vizinhos, os agregados, os varredores, o povo que passa na porta, vendendo alho e sacos de lixo etc. Já a sua coluna providencia a diversidade no interior da cesta. Se o bolo é sempre o mesmo, sua coluna traz a diferença, embora se repita nos quesitos lindinha, um primor de bem escrita e arrematada. Contudo, desta vez achei por bem fazer um reparo ao que você diz, questão de sintonia fina entre o que pensamos sobre essa coisa medonha que é ir à escola por anos a fio e não aprender a ler, escrever e contar. Contar eu até conto, mas meu negócio sempre foi ensinar a ler e a escrever. Sou professora de Português, do tipo que chamam “especialista” (como se a língua não fosse a generalidade das generalidades), só que dos mais taludos, do Fundamental 2 até a faculdade. Em 25 anos de magistério, minha grande preocupação era a sua: ensinar a ler e a entender o que se lê. Não é tarefa simples. As famílias pouco ajudam e a sociedade brasileira muito menos. Ultimamente todo mundo acha que educar é preparar para o vestibular. Ou que educar é fabricar porcas, parafusos e arruelas para a grande engrenagem da produção e do consumo. Claro que tem tudo isso também, vestibular, mercado, isso faz parte, mas não é a parte mais importante. O Kant dizia que é a educação que nos torna humanos, coisa que não nascemos sendo. Largue o bebê no meio das vacas e, se sobreviver, ele será um bezerro esquisito, não um ser humano. É a cultura humana que modela nossa humanidade, assim como a cultura bovina modela os touros e as vacas. Agora vou direto ao meu ponto: o problema não é a horta, não mesmo, pode acreditar em mim. Às vezes, a horta é a solução, porque pode tornar o aprendizado da leitura e da escrita menos abstrato e mais interessante. Pense comigo: ler e escrever manuais de horticultura; fazer listas de legumes e verduras; calcular a produtividade; brincar de feira, de comprar e vender as coisas plantadas e colhidas; fazer um diário da horta; bolar, escrever e ler receitas em que se usam os ingredientes produzidos pela horta… O professor tem de saber fazer essa mediação, claro, o papel dele é botar as coisas em relação e, se ele não faz, bem, não é professor, sinto muito. Pense em quanta coisa têm em comum a horta e o aprendizado da leitura, da escrita e das contas! O problema é sempre a exclusão: ou isto, ou aquilo. Ou horta ou bunda na carteira por horas a fio, garatujando sinaizinhos que não têm a menor relação com o mundo concreto. Depois vem esse discurso politicamente correto e pentelho de “cuidar do planeta”, ah, me poupem! Mas se os caras nem sabem qual é a cor e que cheiro afinal a terra tem? Eu diria que hortas e jardins e pomares e cozinhas são preciosos colaboradores no processo da educação formal, são coadjuvantes inestimáveis das disciplinas desconjuntadas porque as reúnem num contexto de sentido, de realidade, e ensinam para que serve, de verdade, escrever e ler e contar. Hortas, jardins, cozinhas são representantes do tal mundo real, esse grande desconhecido, cujo acesso e compreensão devem ser mediados, facilitados e aprofundados pelas letras, os números, os símbolos coletivos que temos de aprender direito na escola… e em casa também, porque essa leseira a que você se refere, essa falta de gosto pelas coisas, de gente que não sabe, não faz questão de aprender e acha que tudo tem de chegar pronto e mastigado ou nada feito, essa falta de gosto generalizada vem de casa, da família que não conta histórias, não canta para dormir, não ensina a brincar, não ensina a cozinhar e a arrumar o próprio quarto, não valoriza a cultura material e imaterial que modela a alma das crianças (e a dos adultos também)… Outra coisa é que isso também não tem nada a ver com pobreza ou riqueza: a ausência de desejo, de encantamento com o mundo e suas maravilhas, de tesão por aprender, por se envolver com um trabalho legal é uma epidemia medonha, uma peste que grassa em todas as camadas sociais. O mundo está se transformando numa miniatura chapada, fria e inodora, projetada em telinhas cada vez menores. Minha deusa, por favor, hortas em todas as escolas, públicas e privadas, nas periferias e nos bairros chiques! E bibliotecas e museuzinhos da Emília nas salas de aula! E jardins também, porque somos seres carentes de beleza, porque a beleza nos abre para aprender as coisas em profundidade e para sempre! E muitas cozinhas também, com lições de casa caprichosamente escritas em letra cursiva, em lindos cadernos de receitas, por favor! As letras e os números estão aqui para servir à vida e não o contrário.

Beijos, querida.

Eliana Atihé