Viradas

DSC02000Na hora H, por pressa, levei comigo para a praia os livros que estavam mais à mão: “A virada: o nascimento do mundo moderno”, de Stephen Greenblatt (presente da Dê, evoé!) e “O espírito do ateísmo”, do muito fofo André Comte-Sponville, sempre boa companhia, seja em tempos  sombrios ou ensolarados. O primeiro em versão digital, formato de que sempre desconfiei, por conservadora enrustida que sou, e ao qual resisti até aqui. Não mais. Primeira virada de 2014: adoro ler livros em versão digital. Dá pra aumentar o tamanho da letra sem precisar mudar a lente dos óculos, a luzinha da tela é respeitosa e reconfortante, o I-Pad é jeitoso e bom de segurar, posso assumir qualquer posição bizarra que ele se acomoda sem fechar na minha cara ou despregar a página. O segundo, porém, em versão impressa, comme il faut: cheiroso de tão novinho (comprei na livraria Martins Fontes do Leblon, pequenina e arrumada, que adoro), ainda envolvido naquela cinta de papel de cor contrastante à da capa, sempre provocativa (“Os ateus estão condenados a viver sem espiritualidade?”). Um fim de ano filosófico, muito diverso do verão passado, em que só li porcarias ligeiras, deliciosas e hipercalóricas (ver post “Besteiras de verão”). Em termos de leituras, como de reflexões íntimas, portanto, este verão não se anunciava leve. Mas então os dias eram de cristal, animados por um sol recém-inaugurado. E o céu azul, rabiscado de nuvenzinhas garças, era um cut-and-paste de tela de Gainsborough. Beija-flores ventilavam as russélias calorentas, para saqueá-las de seu pólen sem que elas percebessem, como cantava o Kevin Johansen na minha vitrola digital: “Algo parecido flota en mi corazón, suspendido en el aire como un picaflor…” (click no link do lado direito e escute a canção, que me fez lembrar do Gregório de Mattos). Pura verdade. Nesse clima de Éden caiçara, se eu tinha mesmo questões pesadas a ruminar, prefiriria fazê-lo com os epicuristas, uma gente suave, serena e profunda, dona de um senso de humor que considero a quintessência da espiritualidade. Uma gente que acha que a busca do prazer é a razão primeira da existência humana, prazer esse que está longe de ser raso, irresponsável, auto-referente. Um prazer de ser  e estar vivo no mundo, com todas as suas implicações, dores e limitações, e também graças a todas elas. Epicuristas são a turma perfeita para partilhar, no jardim, uma caipirinha de limão siciliano com cravo-da-índia, elaborada com igual capricho pelo livre-pensador Pedro Paulo ou pelo muito evangélico Heres, arrematada num brinde à sombra miraculosa e banal do nosso coqueiro-mor. Pois foi sem querer querendo, e para minha sorte, que carreguei epicuristas comigo para a praia, essa gente agridoce, boa de conviver, com quem nunca se corre o risco dos excessos, positivos ou negativos. Nem niilismos, nem fanatismos (Adorei essa comparação, André, e até já estou usando. Obrigada, como sempre). Epicuristas são como o beija-flor da canção de KJ: eles ventilam a vida para arejar seu cantos escuros e abafados, para persuadi-la a verter sua seiva mais doce e nutritiva. Conheci Epicuro depois dos 35 anos, à sombra de minha tragédia pessoal. Ou seja: na hora certa. Tenho ainda um papelinho amarfanhado, rabiscado há vinte anos, na minha letra garranchenta de sempre, com o Tetraphármakon, o Quádruplo Remédio de Epicuro, que pretende nos aliviar das ilusões que nos tornam infelizes. Está lá o papelinho verde desbotado, espetado no meu mural de cortiça. Começo todo dia olhando para ele: “Não há o que temer quanto aos deuses. Não há necessidade de temer a morte. A dor pode ser vencida. A felicidade é possível”. Antes disso, eu achava, com a miuçalha, que epicurismo era uma filosofia de bandalhos irresponsáveis e hedonistas. Depois de ler o Greenblatt, entendi porque era tão importante caluniar Epicuro, transformando seu perfumado e transgressivo jardim filosófico numa suruba decadente. Se quiser saber o que aconteceu, vá ler você também. Acredito que Jesus era epicurista, mas judeu e religioso, o que atrapalhava um pouco as coisas, mas não muito. A verdadeira atrapalhação veio depois, coitado. Epicuro pelo menos não foi canonizado nem dado como messias, sorte dele. Michel de Montaigne, filósofo querido que me acompanha desde a encarnação passada, é outra personagem modelar do livro de Greenblatt. Montaigne era um epicurista praticante. Aliás só dá para ser mesmo epicurista praticante, já que o epicurismo teórico não existe, até porque Epicuro gostava da simplicidade e da aplicabilidade da filosofia, diferentemente desse povo metido a besta, autoerótico e sectário da academia. O livro de Greenblatt me levou de volta a Epicuro, esse homem de alma compassiva e espírito inquebrantável, que sofria de pedras nos rins em plena Grécia clássica e mesmo assim achava que a dor pode ser vencida. Ele também me levou de volta a Montaigne, que não leio faz tempo, o sábio prático, ensaísta inaugural (inventou o gênero) que nada faz sem alegria (nem mesmo ficar devastado com a morte do filhinho ou do grande amigo La Boétie). Nos epicuristas, encontro a tolerância, a gentileza, a liberdade que ninguém nos rouba, a firmeza com ternura que o Che cunhou em slogan, mas não me parece que tenha continuado a praticar, depois de aderir de corpo e alma a sua ideologia esquizofrênica. E também a abertura à diferença, a curiosidade, a necessidade da beleza, o reencantamento do mundo, o amor como valor fundamental, a sabedoria perene do jardim, em que a vida e a morte passeiam de braços dados, comadres que são. Tudo isso, Epicuro me ensinou quando mais eu precisava aprender. Continuo inscrita no seu curso até morrer, pelo menos, mas ultimamente confesso que andei enforcando umas aulas. Na verdade, cochilei deitada na grama do jardim e o mestre achou que estava ótimo assim mesmo, melhor não me acordar. De lambujem (e que luxo de lambujem!), ainda fui apresentada ao poeta latino Lucrécio, o dáimon de Greenblatt, que escreve literalmente no rastro do primeiro, o autor de um poema espantoso intitulado De Rerum Natura (“Da natureza das coisas”, ver link com PDF neste blog), igualmente perseguido e quase destruído por completo e pelos mesmos motivos óbvios de sempre. O poema a Vênus, deusa do amor e da beleza, chave com a qual Lucrécio abre sua obra, vale, por si só, uma virada.  Obrigada, Dê, pelo Greenblatt que reavivou o epicurismo em meu coração teísta. Segunda virada, mais para revirada: Epicuro revigorado. Nos entremeios, ainda tinha Comte-Sponville, com seu ateísmo mais espiritualizado que qualquer carolice, um epicurista materialista que tem dificuldade para lidar com a mera imaginação dos deuses indiferentes e inacessíveis de Epicuro. OK, ninguém é perfeito. Nem o Comte-Sponville, que pensa e escreve lindamente, ao pulsar de um coração sensível e profundo, além de ser um gato absoluto. Quem encontro lá? Epicuro, Lucrécio e Montaigne, deliciosa sincronicidade! É de Comte-Sponville o trecho que vou transcrever aqui e que li durante o café da manhã do dia 31, a algumas horas da terceira virada, para dois amigos evangélicos que amaram saber o quanto um ateu pode acrescentar aos crentes que não se tornaram fanáticos: “Resumindo: pode-se viver sem religião; mas não sem comunhão, nem sem fidelidade, sem amor. O que nos une, aqui, é mais importante do que o que nos separa. Paz para todos, crentes e não crentes. A vida é mais preciosa que a religião (é o que tira a razão dos inquisidores e dos carrascos); a comunhão, mais preciosa que as Igrejas (é o que tira a razão dos sectários); a fidelidade, mais preciosa que a fé ou que o ateísmo (é o que tira a razão dos niilistas quanto dos fanáticos); enfim – é o que dá razão às pessoas de bem, crentes ou não – o amor é mais precioso que a esperança ou o desespero. Não esperemos ser salvos para ser humanos” (p. 67). Feliz virada.

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