Requiem para um vizinho

Ele era um homem simples que, nas manhãs de sábado, escutava Ray Conniff e clássicos em versões standard enquanto trabalhava numa oficina de marcenaria improvisada na garagem. Eu nunca soube se aquilo era um hobby ou trabalho de verdade, mas ele cantava e assobiava o tempo todo, o que sugeria que, se fosse trabalho de verdade, ele trabalhava feliz. Fazia uns 10 anos que era meu vizinho, os 8 primeiros coabitando com duas guerreiras em permanente prontidão, mãe e filha, a esposa e a sogra dele, amazonas sempre dispostas a iniciar um confronto por nada, uma diferença no jeito de regar as plantas, uma divergência no trato com a lavadora de roupas. Ele era o ponto de inflexão. Enquanto as duas se engalfinhavam, saia para andar de bicicleta, fazer uma compra no mercadinho da rua, ouvir Ray Conniff na garagem, com a serra tico-tico zunindo ao fundo. Eu não me incomodava nem um pouco com o zunido a serra, menos ainda com a seleção musical, que me dava uma certa nostalgia de minhas tias nos anos 1970. Era gostoso de ouvir, nunca alto demais, nunca baixo de um jeito que eu o ignorasse. Assim ele encobria o ruído das discussões infindáveis e, ao mesmo tempo, providenciava para si um refúgio, uma trincheira suave em meio ao campo de batalha. As duas morreram, com talvez um ano de diferença. E de repente ele era o dono da casa, com seu sorriso simpático, sua gentileza, sua conversinha amena. Passado algum tempo, retomou um namoro de juventude. Estava feliz e me contava dessa surpresa que a vida lhe reservara em pleno crepúsculo. Me trouxe uma caixa de doces caipiras, de uma viagem para a terra da namorada. Contudo não imaginava que o destino lhe reservava mais uma carta ainda, desta vez muito sombria. Quando o câncer foi diagnosticado, ele lutou brava e nobremente, como deve lutar um guerreiro quando a guerra se lhe apresenta, não antes, talvez arrebatado pela ilusão de um derradeiro ato vivido em paz e melhor companhia. Hoje, domingo, dia em que a família se reunia na casa do meu vizinho para almoços ruidosos e alegres, escuto um eco de canções de Ray Conniff com coral, orquestra e zumbido de serra tico-tico. Espero que sua alma esteja em paz.

Só que não ou uma pedagogia da frustração de GoT

O habitual nhenhenhem da massa descontente sucede o encerramento da série mais eletrizante já produzida, na minha modesta opinião de seguidora decana de séries desde os anos 1960. Terminou ontem a magnífica Game of Thrones, de cujas referências técnicas genéricas pretendo poupar o leitor que não viveu os últimos 8 anos magnetizado pela saga mitológica narrada ao longo de temporadas aguardadas em agoniada expectativa. Homero, J.R.R. Tolkien e Joseph Campbell teriam endossado e decerto também seguido GoT, se é que não o fizeram em alguma galáxia muito, muito distante. A força com que arrastou e manteve em transe milhões de seguidores devotos e o modo como reuniu grupos em torno da fogueira primordial da imaginação comprova o DNA mítico de Got, bem como nossa necessidade de despertá-lo dentro de nós, a fim de que nossas vidas encontrem alguma relevância simbólica em meio ao deserto desta cultura conduzida pela banalidade da tela onde pululam estereótipos. Um caudal de histórias muito bem encadeadas, desveladas com capricho obsessivo em meio a excessos de toda natureza, histórias contadas sem pressa nem preocupação com a verossimilhança externa ou o IBOPE, o rio turbulento de GoT atingiu enfim seu delta inevitável, espraiou-se e virou lenda registrada com minúcia e letras góticas nas crônicas de gelo e fogo. Uma mitologia viva, orgânica e luxuriante, odisseia trançada de odisseias, um mundo erguido diante de nós, a se desvelar, logo de cara, na magnífica vinheta da abertura que mudava a cada temporada, GoT é um marco como foi O Senhor dos Anéis em sua época, imantado por elementos da realidade cotidiana e capaz de lançar uma compreensão não racional sobre seus eventos. Um cabedal de línguas e culturas exóticas exibidas ao longo da narrativa desmesurada de personagens, um melhor do que o outro, em especial os coadjuvantes, GoT se revelou uma metáfora modelar para nossos tempos medíocres, de mitos literalizados e vividos como complexos inconscientes. Até quanto errou, GoT acertou, acolhendo corajosamente a descontinuidade, os desvios, as decepções, as interrupções, os bloqueios, a traição das expectativas a que chamamos vida. Mas é lógico que, mal se fecham as cortinas sobre Westeros, entra em cena o coral dos descontentes, amplificado pelo habitat ruidoso e bidimensional das redes sociais. Que essa turma reclame com veemência da condução que os roteiristas deram ao desfecho, esse fato, para mim, só conta a favor da dupla intrépida. Se o público que se engalfinha por migalhas no FB gostasse do final de GoT, aí sim eu ia ficar preocupada. O arremate sombrio foi um acinte, uma provocação, uma ofensa à petizada digital que não sabe lidar com a frustração. GoT chutou no peito “istas” de todas as facções e seitas e afirmou o avesso do paradigma heroico: aquele que não se alinha conscientemente com seu destino, infla até explodir e ser reenviado aos próprios limites. Foi assim com Dani e Jon, o casal de protagonistas. Sobreviveram e superaram os que abraçaram seu destino sem perder a noção de si e da realidade: Tyrion arrasador, Bran supreendente, Arya extraordinária, Sansa convencional, Gendry honrado… Foi mesmo a vitória dos ferrados, dos que sofreram mas não morreram, dos que se frustraram em quase tudo e ainda assim, persistiram, dos que foram vitimados por toda sorte de violência mas não se deixaram reduzir a vítimas. O final foi dos resilientes. Se você não tiver essa inclinação, nem comece a assistir.

Tata

Tata tem 88 anos. Quando mocinha, era minha tia-ídola. Linda, respondona, pernóstica que só ela, cabeleira negra da asa da graúna, retocada nas raízes quase toda semana, em luta vã contra uma mecha branca precoce. Na minha fantasia de menina de cabelo crespo, seu cabelo basto de Branca de Neve era a fonte de onde provinha sua força. Tata era a tia ideal para uma menina de seis anos, porque era meio comprometida, meio blasé. De vez em quando, aos sábados, ela nos levava para visitar o laboratório de análises onde trabalhava. Lá chegando, nos exibia aos médicos e às colegas, ganhávamos elogios e distribuíamos beijos. Também visitávamos um banheiro sinistro onde, melancólicos prisioneiros de uma banheira, sapos aguardavam o momento de ser sacrificados no altar da ciência médica. Também brincávamos com coelhinhos idem, mantidos num viveiro no quintal. Era belo e horrível, mas ainda não sabíamos que era horrível. Alguns desses passeios se transformavam em efemérides, caso Tata tivesse recém-recebido o salário. Nesses dias muito especiais, ela nos levava para passear no centro da cidade. Ao Mappin, para comprar bobagens deslumbrantes, tipo tranças falsas de nylon, confete e serpentina, roupinhas de bonecas. Às Lojas Americanas, para comer cachorro-quente com molho.

Acho que foi em 1967, no meu décimo aniversário, que tudo aconteceu. Era uma manhã de sábado. À noite, haveria uma festa em casa e minha mãe se desvelava no preparo dos sanduíches e docinhos. Já tinha um tempo que eu notava que alguma coisa se passava com Tata. Uma tempestade subtropical, um ciclone, um tsunami se formava dentro e ao redor dela. Eu captava os sinais nela e no entorno, escutava comentários e sentia a pressão que parecia ter minha tia como epicentro. Frequentemente também escutava que Tata tinha “minhocas na cabeça”. Minhocas, eu só conhecia as que meu pai enfiava no anzol quando ia pescar e as que eu cutucava na terra dos vasos do quintal. Eu achava que minhocas tinham uma natureza resignada e benfazeja, ao contrário das taturanas, e portanto minhocas na cabeça não deviam ser um problema. Naquele tarde de sábado, as taturanas na cabeça de Tata a levaram a tomar uma atitude radical e literal. Ela decidiu que iria mudar assim, de uma hora para a outra. E iria estrear sua nova persona, sedutora, livre, poderosa, na minha festa da aniversário. De manhã, Tata saiu para ir à cabeleireira, decidida a voltar para casa transformada em outra pessoa. Mas só por fora. Mimada e teimosa, não valeu de nada a argumentação da pobre cabeleireira, em favor do bom senso. Para ela, bastava de bom senso e, nesse dia, as taturanas estavam com a macaca.

Chegou a hora da festa e Tata não chegava. Serviram-se os sanduíches e nada. Chegou a hora de cantar parabéns e nada. No final, quando os últimos convidados já se despediam, Tata chegou. Não sei se ela ficou retida no salão até aquela hora ou se se escondeu em algum lugar, evitando encarar as pessoas. Lembro bem do choque quando vi minha tia “linda maravilhosa”(como ela costumava classificar a si mesma e a nós, suas sobrinhas) com o cabelo num tom de cor de rosa-alaranjado, cortado rente à cabeça. A violência da descoloração queimou seu couro cabeludo e destruiu sua cabeleira esplendorosa de deusa. Um lugar dentro dela também foi destroçado e nunca mais se restabeleceu. Tata queria ter chegado loura platinada em minha festa. A outra dentro dela, que tanto queria emergir, deu um jeito de passá-la pelo fogo da transformação. Sabotada pela sombra, seu ego frágil e infantil não deu conta de responder à altura a tamanho desafio.

Hoje Tata tem mais ou menos 4 anos. De idade emocional. Seu ego mal coagulado estancou naquela noite, em 1967. Dali para a frente, sua vida emocional só fez regredir. Depois do episódio do cabelo, ela teve alguns surtos, nem sei bem do quê, e foi submetida a algumas internações. Eu vi minha linda tia, que sabia desenhar e “trabalhava fora”, desconstruir-se. Seu cabelo nunca mais recuperou o brilho e o volume. Tata seguiu sua vida como uma menina impotente e raivosa, cada vez mais dependente dos outros. Casou-se até, com um antigo namorado de adolescência. Contudo parou de crescer. Alguém dentro dela, talvez a bruxa que a levou a pôr fogo nos próprios cabelos, a manteve criança para sempre, tão superprotegida quanto amedrontada. Assim ela passou, da tutela da mamãe à de um e de outro irmão. Depois se tornou a menininha do marido e, quando enviuvou, sem filhos, retornou à tutela do segundo irmão, meu pai. Suas tentativas radicais e literais de se tornar independente a foram isolando cada vez mais daqueles que, por a amarem muito, interferiram demais na sua vida. E pior: com procuração dela. Aos 88 anos, Tata vive numa ilhota de consciência muito precária e é tutelada com desvelo e dedicação pela filha de um de seus irmãos-pais, minha prima linda maravilhosa. Mora numa casa de repouso cara e deprimente. Fui ajudar minha prima com ela, numa consulta médica esta semana. “Você gosta de mim?”, ela pergunta a todo mundo. Se a resposta é afirmativa, ela insiste: “Quanto? Muito ou pouco?” Nossa conversa, bem louca e engraçada, é a mesma que se entretém com uma criança pequena. Pergunto a ela quem eram seus seis irmãos e ela me responde, pelo nome, em ordem cronológica. “E eu sou a caçulinha!”, faz questão de pontuar ao final. Sim, Tata, você é.

Tut etc

As notícias do derradeiro rolê de Tutancamon me envolveram num certo clima de Mercúrio retrógrado que amo. Nada como passar alguns dias andando para trás e devagar, fluindo nas imagens que ressoam dentro da gente. Flashes da minha amizade com Tutancamon retornam com Mercúrio, ou melhor, com Thot, o Mercúrio egípcio. Entronizado faraó aos 9 e morto aos 18, ele me fez companhia em algum lugar no passado entre meus 14 e 17, pelas datas dos livros que resgatei na estante assim que soube de sua turnê pela Europa. Quando esta for encerrada, o faraó-menino deve voltar para casa e nunca mais sair de sua ala no Museu do Cairo. Uma página arrancada de uma National Geographic, estampada com seu lindo rosto, de lábios e nariz africanos e olhos bem delineados, ficou anos colada na parede do meu quarto. Era sua máscara mortuária de ouro, uma imagem que, a meu ver, só tem concorrente à altura no busto de sua mãe-sogra, a glamurosa Nefertiti. Die young, live forever é um adagio que orna com Tut. Vivo ele não fez quase nada. Ao contrário, desfez o que seu pai-sogro Aknaton, o faraó herege, tinha feito antes dele: instituir, pela força, o monoteísmo como religião oficial do Egito. Não foi pouca coisa restaurar a velha religião, combatendo o legado do próprio pai e devolvendo o poder aos velhos deuses (e principalmente aos seus sacerdotes). Morto, Tut mobiliza multidões loucas para ver as mesmas maravilhas que deslumbraram, primeiro e pela ordem, o arqueólogo americano Howard Carter, seus capatazes egípcios, os felás descendentes dos construtores de pirâmides e, por fim, Lady e Lord Carnavon (os mecenas da expedição), em 1922. Gosto de quando, pela primeira vez, Carter mete uma vela (!!!) dentro da fresta aberta na parede da tumba recém-descoberta e diz: “Estou vendo coisas maravilhosas!” Eu também, Howard! Todos os dias! Tut e sua fabulosa entourage vão se hospedar, de sábado que vem até setembro, no anexo do Louvre que fica no parque La Villette. Pergunta: o que é ser rico de verdade? Resposta: é pegar um jatinho só para visitar Tut em Paris pela última vez (a primeira foi em 1967).

Por falar em Egito, achei Pantera Negra horroroso. Assim como a Mulher-Maravilha reuniu estereótipos masculinos dotando-os, para faturar, de xereca e peitos, Pantera Negra é uma coleção de clichês de super-herói branco maquiados de preto. Roteiro mal amarrado, visual ultra-kitsch porém levado a sério, historinha maniqueísta de gritar, bons atores engessados em personagens planos. Os estilos de atuação são (a) o sapiente-grandiloquente e (b) o espertinho-sarcástico. Não há super-bonder que dê jeito na tentativa do filme de colar civilização ultratecnológica com cultura tradicional. Poderosa Ísis, que pastiche! A linha de sutura usada, no filme, para reunir esses e outros opostos, é sintética e de baixa qualidade. O resultado não poderia ser outro: ela esgarça logo de cara. Juntar as duas coisas num roteiro seria um trabalho para o Super-Roteirista, aquele que bebe nas fontes arquetípicas (as do HQ inclusive) e pede consultoria a um Joseph Campbell da vida. Não funciona para surfistas da mais nova onda sobre a qual tenta se equilibrar a puta velha Hollywood. Afinal o politicamente correto que arranha a superfície (e até por isso mesmo) dá bilheteria. E as mídia pira. O filme só convence quem ou se contenta com ensopado enlatado de HQ com mitologia ou acha tudo lindo só porque todos são pretos. A pobre deusa-gata Bast, mal citada e já empastelada, é apenas um exemplo da ruindade da coisa. O Egito já corria por fora quando a Grécia ainda mal engatinhava, gente! Fazer um filme desses é sobretudo um trabalho mercurial, o de tecer ou restaurar as conexões perdidas da imagem com o arquétipo, usando para isso as linguagens de cinema e HQ, com o objetivo de abordar os mesmos temas, sempre candentes, só que a partir de uma visada simbólica. Algo do tipo “segura na mão de Thot e vai” derretendo estereótipos ao invés de consolidá-los ainda mais. Só que não. Os caras confundem símbolo com efeitos especiais. Na minha modestíssima opinião, que é a de quem segue mitologia como alguns seguem o Face e o Insta, o imenso potencial que o filme tinha para mobilizar imagens potentes do imaginário africano e da alma negra profunda acabou encalhado numa loja de moda e decoração étnica. Uma pena. Que não é a de Maat.

Poderosa Afrodite

Para a Paola, que me mandou contar uma história ao meu corpo.

Ela, a perua. A fútil, irresponsável, metida, temerária. A tudo-o-que-eu-não-sou-deus-me-livre. Sonsa, superficial, fácil. Gostosa e burra? Vagabunda? Puta? Ela nem se abala com minha lista de atributos, só passa por mim rebolando a bunda perfeita de Vênus Calipígia e, já bem lá adiante, me dá uma olhadinha de esguelha do tipo “perdeu, fofa”. Com aqueles olhos dourados, enormes, de longos cílios naturalmente recurvados e sobrancelhas de arcos perfeitos. Beijinho no ombro pra você, amiga. Que no caso sou eu.

Foi revanche dEla. E nem posso reclamar, porque sei muito bem das barbaridades que ela aprontou com o Hipólito e aquele diretor de teatro do filme do Polanski (e o próprio Polanski, sem falar do Woody Allen, de quem surrupiei o título do post). Comigo ela foi beeeeeem mais sutil, embora não menos cruel, considerando a vastidão dos hematomas e a minha cara atual de panda-zumbi-mutante. Talvez tenha funcionado a meu favor o fato de que eu não a esnobo de jeito nenhum, não sou nem louca. Sou, afinal, uma Virgem sensata. Falo bem dEla para todo mundo, teço loas a Ela sempre que posso, a senhora da beleza “múltipla e vívida”, mas também “efêmera e pessoal”. Vou lá na Ginette Paris pegar coisas lindas para falar sobre Ela, a que “torna a vida cotidiana mais bela e civilizada”, porque a Beleza é o verdadeiro fundamento da civilização e blá blá blá. Cuido do meu jardim, rego, adubo, abraço minhas árvores, celebro com júbilo as bocetinhas que minhas flores escancaram, faço prestimosos buquês e os espalho pela casa. Tenho, aliás, dois vasos lindos de Spatiphylum, os chinelinhos dEla, que florescem pontualmente em junho. Contudo Afrodite não é tonta. Sabe perfeitamente que, além das plantas, também cultivo por Ela uma pontinha aguda de desprezo, inveja e suspeita. Que a critico em segredo, enquanto a louvo em público.

Onde os deuses vêm repousar
Arranjinho de flores caseiro: uma oferenda à beleza que não dura

“Sou de Virgem e, só de imaginar, me dá vertigem”, cantava João Bosco em plena Idade do Bronze. Afrodite se compraz em dar vertigens em virginianas práticas, realistas, estáveis, controladoras e previsíveis como eu. E na hora da vertigem de Afrodite, nossa sensatez inata se esboroa qual bolha de sabão contra asfalto quente. Sou uma virginiana platônica e estóica, para piorar criada na religião protestante. Virginianas são virginais por definição, mais afeitas a divindades luminares como Jesus e os gêmeos Ártemis e Apolo. Nascemos especializadas em separar, organizar, abstrair, distanciar-se, explicar, enxugando assim os excessos voluptuosos dEla, tentando conter a tendência dEla para disseminar, assimilar, desfrutar sem culpa, fundir e confundir, valorizar o inútil… Foi assim por algum tempo em minha vida. Agora porém não mais. Afrodite Dourada me avassalou. Fui intoxicada por seu mel. Estou aqui, de molho, roxa, inchada, costurada e subjugada por um mandato dEla. Recorrendo à querida Ginette Paris, que sempre me socorre nesse assunto: “Insistindo sobre a beleza de Afrodite, como inevitavelmente acontece, arriscamo-nos a esquecer que seus mistérios dizem respeito ao corpo todo, e não apenas à vista. A mulher que tem as qualidades de Afrodite sabe movimentar-se, respirar e vibrar e é capaz tanto de gerar quanto de receber energia sexual de alta intensidade”.

Você acha mesmo que lacrou? Então saiba que tem mais. Ginette me conta que a beleza de Afrodite constitui um “estado de graça”, composto “mais de uma audácia e encanto do que da conformidade com uma norma externa”. Terei cometido tamanha insensatez apenas para descobrir que o tal “estado de graça de Afrodite” já estava aqui faz tempo? Tão típico dEla isso, a mentirosa que engrupiu Pandora e Eva e eu, não necessariamente em condições de horizontalidade. Ou será que tudo isso está sendo uma espécie de rito sangrento, o anúncio de uma “florada tardia”, a desabrochar tão logo o panda desbote? Quem sabe seja isso e mais… ou menos. Com Ela, a gente nunca sabe.

Playlists

Para terminar e começar o ano, Gilberto Gil. Alternando yin-yang, no ritmo mesmo da vida, esse pop wu-wei. Palco. Drão. Realce. Rebento. Indigo blue. Se eu quiser falar com Deus. Refazenda. Extra. Toda menina baiana. Tempo Rei. Estrela. Raça humana. Debaixo do barro do chão. Copo d’água… Por aí vai, mas por aqui fico.

Quanto tudo der certo, James Taylor. Quanto tudo der errado, Leonard Cohen. Pode ser o contrário também, até porque nem tudo dá só errado ou só certo. Melhor alterná-los também, por motivo de realismo. Today today today. Dance me to the end of love (que pode ser com a Madeleine Peyroux). Wild mountain thyme. Everybody knows (em versão tangueira, com Kevin Johansen). Blossom. Night comes on. Carolina in my mind. Suzanne (esta com a Nina Simone). Angels on Fenway. Waiting for the miracle. Sweet baby James. Choices. Fica a amostra, pra quem quiser brincar na gangorra.

Playlists antigas, do tempo da fita cassete. Escolher os LPs, escrever a lista como uma carta, empilhar discos, gravar canção a canção, ordenando com cuidado a narrativa. Paciência de artesã, devoção de sacerdotisa, amizade juramentada pelo tempo do sagrado desperdício. Os deuses compõem, a gente recompõe e vai vivendo, ao som do que eles cantam para nós. Uma em particular, de emergência, também todinha do Gil. Gravada a meu pedido por um casal que eu mal conhecia, a quem acho que nunca agradeci o suficiente. Primeiros socorros num caso de hemorragia grave.

Minha playlist para o reveillon de 2011, gravação prestimosa, copiada em duas dúzias de CDs caseiros, meus presentes de natal forjados no mais absoluto desperdício de tempo. Brand new day, com Sting e Stevie Wonder. Hold on you, com Jeff Bridges. Dura na queda, com Elza Soares. Ainda sem a moleza do Spotify, eu já podia contar com a mão na roda do ITunes. Fiz tudo no capricho. Escolhi cada conta e fui enfiando uma a uma no cordão, cada qual com seu formato, cor, padrão, textura… Enquanto enfiava, eu pensava em quem usaria o colar. Acho que só eu gostei, porque afinal era comigo que as canções falavam. Fechado o CD, continuo metendo contas no mesmo fio, a playlist ainda aberta no ITunes: Money can’t buy it (Annie Lennox), Anthem (Leonard Cohen), Into your arms (Nick Cave). Playlists são um pouco como a vida. Só que sempre dá pra escolher.

Faz uns meses, comecei a montar a playlist do meu velório. Está ficando linda. Já mudei muita coisa, tirei, pus de volta e suspeito que ela vai ficar longa demais para minha curta vida. Daria para tocar a noite inteira, entre shots de cachaça e canja quente, caso as noites viradas com o defunto ainda estivessem na moda. Eu, contudo, não vou ligar de passar sozinha essa noite em especial. Afinal estarei na melhor das companhias.

 

Efeitos de Mercury retrógrado

Quando eu era pequena, a TV Record tinha um programinha xarope, embora sem efeitos colaterais afora os decorrentes da ingestão de carboidratos e açúcar. Chamava-se Pullman Junior e passava no final da tarde, depois que a gente voltava de brincar na rua, fazia lição e tomava banho, esperando a hora do jantar. Era uma espécie de ritalina televisiva que servia para baixar nossa “excitação”, como dizia meu pai, e nos enquadrar no modo descanso. Apresentado por um arremedo de padeiro chatíssimo e inverossímil, o roteiro era basicamente esse mestre de cerimônias botar o microfone na frente da boca cheia de bolo das criancinhas presentes (todas engalanadas com coroinhas de papel crepom) e perguntar para quem elas queriam mandar beijos. Como o tempo, apareceram algumas entrevistadoras, mocinhas ainda mais tontas do que o padeiro, se é que isso era possível. As crianças respondiam e saiam coisas ininteligíveis, em meio a uma chuva ansiosa de bolo mastigado que emporcalhava o microfone. Decerto um programa ao qual certas mães perfeitas de hoje em dia jamais levariam seus rebentos, temendo de atos de pedofilia a graves contaminações por via oral. A parte entorpecente do programa servia para nos deixar meio aturdidos, enquanto tentávamos identificar, nem sempre com sucesso, a quem se destinava a burocrática homenagem que chafurdava num lamaçal de massa de bolo misturada com saliva. Alguns entrevistados se atrapalhavam, zelosos de citar todas as tias, padrinhos, avós e agregados que – eles sabiam – estavam, naquele momento, vegetando diante da tela em preto e branco, ansiosos por uma migalha de deferência com bolo Pullman. No interlúdio desse ritual modorrento, vinham os cartoons, que era o que nos interessava… nem sempre tão anestésicos quanto nossos pais gostariam. Para dar uma ideia, conheci os super-heróis da Marvel no Pullman Júnior, em desenhos semi-animados, cheios de imagens paradas com locução de fundo: Homem de Ferro, Namor, Capitão América, Hulk… Ainda sei a musiquinha de abertura dos desenhos, caso interesse (“… tem um viking imortal com um martelo infernal / e o galante lançador do escudo voador…”). Lembrei disso agora nem sei porque. Pode ser porque eu esteja vivendo mais uma temporada de Mercúrio retrógrado. Ou porque ontem vi o primeiro capítulo da série A Amiga Genial, da HBO, baseada nos livros da Elena Ferrante, e me lembrei como minha vida de menina era, ao mesmo tempo, muito limitada e muito interessante. Ou porque ando achando esta contemporaneidade digital, moralista e histérica um saco absoluto. Enfim, se você ainda está vivo e se lembra do Pullman Junior, por favor, poste um comentário!

Na metáxis

Há deuses que são cêntricos. Demarcam um território. Desenham fronteiras claras e o povoam de atributos, imagens, símbolos, emblemas, virtudes, vícios. No politeísmo, o universo está coalhado de centros, cada um deles regido por uma divindade que muda de forma, nome, cor, temperamento, roupa em resposta ao imaginário local que a engendrou e nutre. Nos monoteísmos, a coisa se complica. O território tem de ser o universo inteiro e não sobra nada para mais ninguém. Daí os problemas insolúveis que advêm desse unilateralismo exclusivista, que pode até funcionar nos protocolos ideológicos, nos dogmas, nas doutrinas, nas sharias, mas que, na prática, resulta num empurra-empurra cósmico-caótico de dimensões calamitosas. Deuses cêntricos não me interessam hoje. Quero falar de deuses que não têm centro, que não fazem questão nenhuma de ter um centro, que se constituem como descentrados e, por essa razão, estão livres para servir a centros alheios. São os deuses da metáxis, sobre quem aprendi com Rafael Lopez-Pedrazza. Circulam no espaço liminar. Enxameiam em torno da soleira. Regem o tecido conjuntivo. Presidem encruzilhadas. Zelam pelos caminhos. Guardam bordas e preservam divisas. Movem-se pelo território medial e nele tecem conexões que propiciam relações e trocas, enriquecendo os centros que deles dependem para comunicar-se. Um desses deuses é meu daimon Hermes, o Mercúrio duplo regente que me acompanha desde que estreei nesta encarnação, um padrinho paradoxal que me alterna entre a sensatez focada de Virgem e a dispersão inquieta de Gêmeos. Vou falar dele hoje, só dele e não de anjos, nem mesmo de Eros, “o grande demônio” a que se referiu Diotima, a mestra de Sócrates, citada n”O banquete”. Esse daimonismo das figuras da metáxis implica, segundo Pedrazza, uma certa impessoalidade, uma aparente recusa de adesão do arquétipo a formas definidas demais, a valores excessivamente coagulados. Os deuses da metáxis são elusivos, escorregadios, irredutíveis a um só domínio. Têm, em contrapartida, grande flexibilidade e permeabilidade, qualidades não heroicas fundamentais, quando a contribuição é pôr a psique em movimento, se e quando ela tenta estagnar num único polo, num centro egóico renitente e quebradiço. Deuses da metáxis trabalham para aproximar e reunir os opostos, promovendo intermitentemente a Solutio e a Coagulatio do ego, com o fito de aliviá-lo de suas ilusões fundamentalistas. Quando, porém, a região da metáxis se esvazia dessas figuras e nossa psique congela em opostos inconciliáveis, dando ensejo a todo tipo de polarização esquizofrênica, não importa a lateralidade, estamos ferrados, só para usar um termo técnico. E já que há muito os deuses viraram doenças, vêm tentando substituí-los (sem muito sucesso, segundo James Hillman) algumas figuras humanas a quem caberia viver (mais do que simplesmente teorizar) e trabalhar na zona da metáxis, tanto da psique individual quanto da coletiva. Como servos de Hermes que deveriam ser, espera-se que esses agentes funcionem como psicopompos, guias da alma, pequenos sacerdotes do baixo clero dos deuses subalternos e imprescindíveis, os mensageiros, arautos, motoboys alados em permanente movimento “entre”, promotores do insight, hermenêutas de sonhos e oráculos de outros deuses, pastores de almas de vivos e de mortos. Hermes é um deus servidor, ele mesmo patrono e ideal dos servos, menos digno que medalhões como Apolo e Palas Atena, como afirma o Pedrazza. E quando seus servos, a quem caberia trabalhar na metáxis, promovendo a flexibilidade e vascularização de nosso tecido conjuntivo psíquico, se bandeiam para a banalidade histérica reinante e perdem a noção de seu papel e função, então estamos mesmo fodidos. Com a metáxis virando um deserto da alma desprovida da capacidade de tecer conexões, interditada de insights, carente de sabedoria prática, impedida de acessar as mensagens que sussurram muito abaixo da demência das redes sociais; quando os que deveriam servir à metáxis se envolvem em debates paranóicos pelo Whatsapp e são incapazes de promover, com sua hermenêutica, visões menos superficiais e vulgares dos fatos brutos, rendidos que estão à polarização vigente, temos de nos virar sozinhos. O que talvez seja um excelente subproduto da loucura que acomete os que deveriam nos ajudar a lidar com nossa loucura. Temos de invocar nós mesmos, em nós mesmos, aos deuses sem centro: a Hermes e Eros e aos anjos, para que eles nos ajudem a enxergar além das projeções maniqueístas e escatológicas que instauram o delírio persecutório, talvez por parte daqueles que buscam algum tipo de experiência que os faça se sentir mais reais. Os quadros coletivos de pânico que acometem jovens e nem tão jovens assim, todos pueres, são, a meu ver, sinais catastróficos da irrupção de Pã, um filho de Hermes. Pã experimentado, neste momento, como sombra. O Grande Todo que ameaça o ego individual de dissolução anda estremecendo as estruturas da consciência, sem que haja hermenêutas com coragem e imaginação para divisá-lo e interpretar suas mensagens. Estão em surto de pânico, os hermenêutas teóricos. Diante desse cenário, que Hermes, Eros e os anjos valham àqueles que os reconhecem, neste interregno despovoado e ermo, destituído de imaginação e de emoções que não sejam as fabricadas pelas redes sociais,  ajudando-nos assim a viver a angústia individuadora deste episódio coletivo de Solutio e Coagulatio. Que eles nos auxiliem a buscar uma visão mais psicológica e mitológica dos eventos do cotidiano banal, a fim de que nossa vida ganhe mais utilidade e profundidade.

Odisseia

PRELÚDIO COM HOMERO

A Radio France Internationale remunerou um sortudo para comentar a Odisseia, instalado numa ilha do mar Egeu, em pleno verão grego. Síntese de férias arquetípicas com um trabalho dos sonhos, o projeto resultou numa série de podcasts, transmitidos em 2016. A Sonia me deu de aniversário o livrinho precioso, com a transcrição da série. Posso não ter o verão grego, nem uma ilha no mar Egeu, nem mesmo uma rádio que ache relevante transmitir podcasts sobre a Odisseia (embora dê para ouvir “Un eté avec Homère”, de Sylvain Tesson, na Radio France Inter, é só baixar o APP). Mas trago comigo, há 44 anos, uma versão amarelada e deveras remendada com fita adesiva (várias gerações dela) desse clássico dos clássicos que nunca nutriu veleidades de livro sagrado e, por esse motivo, não fundou doutrinas nem inspirou dogmas, graças a Zeus. Contentou-se em iluminar um vasto cabedal de vidas humanas, em sua longa e fecunda existência. Gosto de pensar que tenho a Odisseia em comum com meu querido Michel de Montaigne, por exemplo. E se não tem vocação para revelação divina, a Odisseia tampouco arroga-se a condição de relato histórico. Pura fantasia politeísta, a narrativa do retorno de Odisseu para sua amada Ítaca, continua sendo um farol aceso em meio à grossa neblina da História. Depois de alumiar as mais densas trevas, continua a apontar um rumo para dentro de nós, nesta não menos tenebrosa era da pós-verdade digital.

 

VALEU, MONOTEÍSMOS!

Escrita há aproximadamente 2500 anos, ela e sua irmã, a Ilíada, ainda servem de vacina e antídoto contra fundamentalismos, sejam eles religiosos ou políticos. Aliás, desfavor supremo que as ideologias monoteístas (com ou sem Deus) nos prestaram, esse de literalizar os mitos, a fim de arrancar deles uma verdade única, para uso de poucos e sujeição de muitos. Hoje em dia, com a palavra “mito” sendo reiteradamente tomada como sinônimo de mentira, fica quase impossível compreender o poder de contraveneno que os mitos oferecem aos seres humanos, uma imunidade simbólica que ajuda a prevenir, podendo até mesmo curar, toda sorte de intoxicação racionalista, além de nos fazer mais espertos na identificação de divindades ilegítimas e oportunistas.Vejo na perversão literalista que confunde mito com mentira uma clara intenção, consciente ou não, de impedir nosso contato com a verdade em forma de metáfora, essa estratégia genial da mente simbólica para submeter a realidade bruta ao escrutínio da imaginação. O problema é que, carentes de imunidade mítica, a gente acaba por atuar os mitos, relegados ao inconsciente pela marcha inexorável da todo-poderosa razão lógica, mascarada de ego monocrático. Daí que, quando emergem, na forma dos complexos coletivos e individuais, os mitos nos avassalam por completo, seja na escolha de um parceiro, seja na de um candidato.

 

NOSSOS DEUSES RASTAQUERAS E OUTRAS PORCARIAS

Na deplorável campanha política que rola enquanto escrevo, a figura do Pai arquetípico, Odisseu perdido no mar, tentando voltar para casa, foi reduzida a dois estereótipos polares, igualmente indigentes e perigosos: o pai permissivo e o pai controlador. E a tragédia se avizinha, quando seres humanos mortais são possuídos por uma energia inconsciente, transpessoal, e fazem uso dela de forma ímpia, confundindo-se, eles mesmos, com deuses. Aprenderemos, como a Odisseia ensina, a assumir a responsabilidade pelo nosso destino? Tenho sérias dúvidas. Na Alemanha nazista, o mito inconsciente, manipulado por marqueteiros pra lá de sinistros, fez o que fez e nem por isso o monstruoso imaginário nazista foi erradicado de psique coletiva. O mesmo ocorreu na finada URSS stalinista, transformada na Rússia subjugada por uma terceira modalidade de czarismo. Nem na Venezuela chavista, tampouco na Espanha franquista. As pessoas são tão tolas que acreditam que o mal tem mão única, como certas avenidas. O mal é multiforme e resiste ao nosso bom-mocismo politicamente correto. Ele não será erradicado jamais, a menos que a raça humana seja, ela mesma erradicada. A Sombra é, também ela, um arquétipo. Nossa única defesa contra seus subprodutos, o nazismo, o racismo, o sexismo, os totalitarismos etc, todos reduzidos pelo ego a categorias racionais manobráveis, é perceber que eles, os subprodutos, se enraízam no irracional absoluto, na densa noite antropológica, nos porões viscosos do nosso cérebro límbico, lá onde a razão lógica é calcinada à chegada. Conscientes, narrados, vividos na imaginação, restaurados no mundo como estratégia calibradora da mente frente ao real, os mitos nos dão acesso à razão simbólica, a qual não subestima a eternidade e o poder de nossos titãs e monstros, precariamente encarcerados no Tártaro. Aprender superficialmente com as teorias do ego racional não é, nem de longe, aprender na profundidade da alma, que nos pede sensibilidade e experiência…

 

POSLÚDIO COM HOMERO

Li a Odisséia na adolescência, mais interessada nos deuses do que nos homens, eu, menina batista, herege, louca por imagens e interditada delas por um tipo muito específico de discurso literal. E a li ávida, pulando partes, pecado do qual já fui absolvida por Umberto Eco e Alberto Manguel. Ao longo dos anos, pesquei o livro na estante muitas vezes, fosse para reler algum trecho, fosse para encontrar uma epígrafe ou matar a saudade de um personagem. Gosto de repassar meus epítetos favoritos, Atena deusa dos olhos verde-mar, Odisseu progênie de Zeus, Agamenon pastor de guerreiros, Aurora de dedos róseos, Helena de longos peplos, o altivo Telêmaco, a sensata Penélope, o louro Menelau… Porém nunca mais retomei o livro inteiro. Foi o livrinho que a Sonia me deu e a inveja de Sylvain Tesson que tiraram a Odisseia do esquecimento honroso da estante, para coroar com ela minha precária pilha de criado-mudo. Prova de que a alma pode dar sentido e utilidade, mesmo às emoções mais inadequadas.

Brio

brio

O brio é uma qualidade humana que, para o mal de nossos pecados, saiu de moda faz tempo. Prova disso é a tradução tosca do título do filme “Le Brio”, de Yvan Attal, que acabou virando “O orgulho”. O fulano que trocou brio por orgulho não entendeu rien de rien, como canta Edith Piaf. O “brio” tem uma complexidade e uma sofisticação de que o “orgulho” carece, mais aderido que é aos chiliques do ego do que às sutilezas da alma. O orgulho ostenta e o brio revela. E é sobre revelação esse filme simples, sem pretensões estéticas nem narrativas estroboscópicas, só uma historia demasiado humana, com começo, meio e fim. Se fosse um filme americano, suspeito que a gente receberia de “brinde” um maço em preto e branco de lições politicamente corretas. Como é um filme francês, podemos nos deleitar à vontade nas nuances. Se tem um ator que eu persigo, é Daniel Auteil. Faz trinta que sou fã de seu narigão gaulês e de seu talento. A primeira vez que o vi atuando foi em “Jean de Florette”, mocinho como eu, ao lado do grande Yves Montand (ele, não eu). Desde então, vou ver tudo o que ele faz, mesmo porque ele costuma ser maior do que a maioria de seus filmes. Nem ligo para o diretor, a crítica (essa então, eu passo reto), os prêmios… “O Brio” é um tour-de-force entre ele e uma jovem atriz maravilhosa, Camélia Jordana, que merecidamente ganhou o César 2017 de revelação pelo papel. Jordana e Auteil dão vida a Neila Salah e Pierre Mazard, aluna caloura e professor decano de Direito na Universidade Paris 6. Opostas e complementares, as personagens são, de saída, enredadas numa armadilha típica deste nosso espírito de época. Neyla, moradora da periferia de Paris, neta de imigrantes árabes, já chega atrasada à primeira aula de Retórica e na vibe certa para encarnar o tipo passivo-agressivo de vítima do sistema. O professor Mazard, por sua vez, cínico, desencantado, prepotente e vulnerável, é o algoz sob medida para ela. E os dois se entrechocam, a côncava e o convexo. Um incidente desagradável irá promover um encaixe e impedir que ambos se dissolvam no caldo ralo do maniqueísmo reinante. O que salva a ambos é justamente o brio. O brio que Neyla vai descobrir e que dá a ela resistência e auto-estima, impedindo-a de mergulhar no complexo cultural que está logo ali, de goela aberta, pronto para mastigá-la. O brio que o professor Mazard vai redescobrir e que lhe permitirá renovar seu compromisso com o papel de professor, revigorar-se como pessoa e salvar seu emprego. O roteiro pisa em ovos mas não resvala nos estereótipos, ao contrário: é o arquétipo do mestre-aprendiz que fala, com aluna e professor envolvidos num embate retórico e existencial que os reconecta, cada qual, com seu destino. Pensando sobre a perda do significado de brio em nossa língua, creio que compreendi porque a palavra caiu em desuso, a ponto de ser substituída pelo que não quer dizer. Num mundo em que é muito importante ter pena de si mesmo e, se possível, fazê-lo à luz das redes sociais, ao som e à fúria das narrativas midiático-digitais, o brio não é bem vindo simplesmente porque é o oposto da auto-piedade.  Para recuperar seu sentido, recorro ao bom e velho Aurélio: “Brio, do celta ‘brigos’, força, coragem. Sentimento da própria dignidade. Ânimo, valentia. Galhardia , garbo. Vibração, entusiasmo, fogo. Meter em brios: estimular alguém da melhor maneira possível”. Notaram como trocar brio por orgulho é um grave equívoco?

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