A gaita de Stevie Wonder

O cheiro de bosta de vaca reina soberano no presépio, mas ninguém está nem aí. Um querubim recolheu as asas desengonçadas para ordenhar Zlate, a cabra que Isaac Bashevis Singer emprestou, sem saber que o leite era para um messias. Maria não pode se sentar de tanta dor e está com um pouco de febre também, deve ser a mastite, o menininho ainda não sabe mamar direito. Baltazar se sentou num cantinho para rabiscar o mapa astral, ele nem tinha pensando em dar uma cópia aos pais, imaginem. Gaspar percebe e dá um toque no amigo, melhor não, Balta, deixa eles pensarem que vai dar tudo certo com o filhinho, já é difícil quando a gente não sabe nada. Duas pastoras acabam de entrar, apertando cordeirinhos recém-nascidos nos braços. São um casal de lésbicas lacto-vegetarianas e trouxeram uns queijos de ovelha muito bons para dar de presente à família, nossos bebezinhos, nem pensar, elas cochicham, apertando ainda mais os cordeirinhos. Um bebum entrou e quase ficou sóbrio com a luz do desajeitado querubim ordenhador, ainda bem que Zlate é uma cabra velha e paciente. O bebum bebeu demais para ficar sóbrio assim, do nada, só com uma luz de anjo, mas entendeu que a coisa que rola por lá é da ordem do inefável, então resolveu ficar de bico calado. Os Beatles acabaram de chegar, todos os quatro de terninho de primeira comunhão e franja. Trouxeram um álbum do Sargent Pepper’s, mas estão duvidando que aquele pessoal tenha vitrola em casa. Bem fez o Paul, que trouxe um violão que agora dedilha enquanto canta “Blackbird” baixinho. O bebê, agitado com o movimento, pisca duro os olhinhos, duas, três vezes, para logo mais cair num sono de gato. Essa o bebum conhece e cantarola engrolado, sem conseguir lembrar a letra.  A vaca solta um longo pum sonoro, odorífero e Melquior resolve queimar um pouco do incenso, só para aliviar o clima. Muita gente, bichos, a noite está fria lá fora, todos querem ficar dentro, juntos, é estranho isso. O querubim não sabe distinguir fedor de perfume e acha tudo muito interessante. Depois de finalmente conseguir encher um pote de cerâmica com leite de cabra, ele tenta inventar um jeito de dá-lo para o menino. José ri do anjo, será que é pecado rir de anjo? Ele é um homem pio, religioso, sério, um descendente do rei Davi, espera-se dele, portanto, uma certa compostura, mas José pensa que o rei Davi afinal era um homem apaixonado e confuso, então ele ri como o rei Davi teria rido, se visse um querubim lidando para inventar uma mamadeira. Um menino de 8 anos, suado e vermelho da corrida, salta para dentro do presépio. A mãe dele mandou um pão doce trançado para a senhora. Ele comeu a ponta, só a ponta, nem dá para perceber, de tão bem cortada. Ainda tem umas iscas de pão em volta do boca do menino, quando ele entrega o embrulho com a trança para Maria. Ela sorri, beatífica, embora tenha mesmo vontade de gritar, demoníaca: vão todos embora daqui, seus inúteis, me deixem descansar em paz, não sabem como se sente uma mulher parida? O nenê vai chorar a noite inteira, visitas demais, estímulos demais, luz demais, barulho demais, cheiros contraditórios, estímulos suficientes para perturbar um deus do tipo impassível. Maria sabe que ninguém deve arredar pé de lá por enquanto e reza, em surdina, reza rápido, sem nem pensar nas palavras, reza para que a pantomina acabe logo e ela então consiga descansar. Paul parou de cantar, porém outro som se anuncia, de longe, divino, celeste, sujo, lamentoso. O som faz um arrepio percorrer as asas do querubim, de cima a baixo. Zlate bale animada. Vai crescendo o tal som, vai crescendo e deve estar agora mesmo atravessando o olival, cada vez vai chegando mais perto. Os olhos das pastoras umedecem só de ver: no céu, as estrelas incandescem. Chegou enfim à porta o portador do som e é como se Deus mesmo chegasse enfim à porta, Deus tocando aquela flauta curta, prateada e horizontal, com seus beiços de negão. Baltazar e Melquior abrem caminho para o som que ri e chora, que alegra e entristece de rachar o coração no meio, saudando o menino e seu destino terrível, magnífico. Maria reconhece o recém-chegado, na contraluz do anjo, pela profusão de trancinhas. Foi ela quem o chamou há uma semana, quando ainda estava em Nazaré, ansiosa e insegura. Não contava que ele viesse e ele veio. As lentes negras dos óculos dele refletem os olhos dela, quando ele se curva para saudá-la com um gesto de cabeça sem, contudo, parar de tocar sua gaita para ela. Paul pensa em acompanhar com o violão. Impossível, porque tudo é gaita, o mundo, o universo é uma gaita que a boca de Deus beija sensual, amorosamente. O bebum chora e o menino suado aninha a cabeça na beirada da manjedoura. Tudo é paz, tudo é amor, porém ninguém dorme ao redor, nem mesmo o bebê, enquanto Stevie Wonder toca. Sua gaita é maior do que a asa do anjo, maior do que o rei Davi, pensa José, receoso de estar cometendo um pecado.

stevie_wonder

 

8 Comentários (+adicionar seu?)

  1. Cristiane Marino - Mulheres em Círculo
    nov 27, 2014 @ 18:49:18

    Eli, que viagem! Nunca imaginei que ia acabar na gaita…
    Bjs

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  2. rubens osorio
    nov 27, 2014 @ 21:26:12

    Eliane, vc tava lá? A descrição tá perfeita!!! Adorei!!!

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  3. Daniela
    nov 29, 2014 @ 11:37:15

    Magnifico!!! Adorei!!!

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  4. Lourdinha Heredia
    nov 30, 2014 @ 08:52:07

    Viagem mesmo – a liberação total da imaginação, a palavra certa, a imagem sensacional! Eli, você não existe!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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  5. Maria Cecília Sanchez Teixeira
    dez 15, 2014 @ 17:22:43

    Absolutely wonderful! Me senti lá e me coloquei na pele de Maria. Aguentar todo aquele povo logo depois de parir… Ninguém merece. Adorei as pastoras lésbicas. Visão transgressora dos contos de Natal sem ser desrespeitosa ou cínica.

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  6. elianaatihe
    dez 16, 2015 @ 16:38:31

    Republicou isso em Mulher-Esqueletoe comentado:

    Minha mensagem de natal do ano passado, que continua servindo para este ano.

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  7. Carol Costw
    dez 19, 2015 @ 11:51:06

    Lindo! Não existem palavras que descrevam meu deslumbramento… Feliz Natal!

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