Uma outra história, que fica para uma outra vez

tatiana_belinky

Querida Tatiana,

Escrevo esta carta minutos depois de saber que você partiu “deste mundo descontente”, como cantou Camões. O velho bardo lusitano que, por sinal, anda sendo usado inadvertidamente, por gente que mal sabe do que está falando, tinha não poucas razões para expressar assim a sua desilusão com o mundo. Eu tendo a concordar com ele: este mundo é mesmo um lugar muito e cada vez mais descontente. Espero que, contente como você sempre foi, encontre, do outro lado, um mundo mais parecido consigo. Especialmente porque você não partiu cedo, tinha 94 anos bem vividos, recheados de livros, de viagens, de amigos, de entrevistas, de palestras, de fãs, de leitores, de artigos, de aventuras, de atos verdadeiramente políticos, em defesa da alma das crianças… Você viveu a sua vida inteirinha, de cabo a rabo, e ainda nos deixou a mais maravilhosa das heranças. A morte de alguém importante e querida como você sempre nos leva de volta àquelas fantasias de infância que certos adultos continuam a alimentar, de um jeito meio extemporâneo e canhestro. Para encarar a realidade de nosso fim, do fim inadiável da nossa historinha, precisamos inventar continuações. Essa é a “outra história que fica para uma outra vez”, como dizia o Júlio Gouveia, o grande amor da sua vida, Tatiana, a cada final de capítulo da adorável e singela versão inaugural para TV de “O sítio do pica-pau amarelo”, que, juntos, vocês criaram, para nosso deleite. O Julio dizia isso e fechava aquele livrão dele, de onde saíam as histórias que a gente assistia de olhos estatelados, muitas vezes enquanto a imagem da TV era acometida de um surto de listas horizontais, que cortavam as imagens e as faziam rodar as telinhas (sim, aquelas eram verdadeiras telinhas!) feito frangos num espeto giratório. Quando ele dizia isso, a gente tinha um siricutico de nervoso, porque queria saber o que ia acontecer e ia ter de esperar uma semana, no mínimo, até a tal outra vez. Eu sinceramente achava que aquele homem sobrancelhudo e bonzinho (mas também ligeiramente malvadinho, dava para ver nos olhos dele que ele gostava de nos deixar dependurados) era o próprio Monteiro Lobato, que adiava nosso prazer por mais uma semana e nos mandava brincar na rua com nossas amigas ou ficar em casa mesmo, brincando de casinha com as nossas bonecas. Foi por causa do Julio e daquela estratégia antiquíssima e infalível que descobri o verdadeiro Monteiro Lobato, um homem muito mais sobrancelhudo do que ele. Monteiro Lobato morava nuns livros verdes que eu tinha lá em casa, mas nunca havia folheado, porque só gostava de ler as histórias da minha coleção vermelha do Mundo da Criança. Suspeito que a cor tinha mais a ver com a minha escolha do que o conteúdo. Eu era muito mais seletiva naquela época. Você e o Júlio me fizeram descobrir a coleção verde e me estimularam a virá-la do avesso, no começo apenas para saber o que ia acontecer na tal outra história que não ficava mais para outra vez, porque eu não conseguia mais largar aqueles livros, um mais maravilhoso que o outro. Minha vida era muito contente, não porque eu tivesse um monte de brinquedos, nem porque eu tivesse um quarto só para mim (eu dormia no sofá da sala), muito menos porque eu viajasse, nas férias, para a Disney. Meu contentamento quase sempre vinha dos livros da minha coleção do Monteiro Lobato. As histórias dos picapauzinhos aliviavam minha dura existência de aluna de escola pública, a semgracice da minha família, as infernais visitas que minha mãe me obrigava a fazer com ela, quando eu sempre podia levar um livro verde comigo, para me salvar do tédio das conversas dos adultos. “Ler não comporta imperativos”, você costumava dizer. Que verdade mais profunda! E como você e o Julio, de repente, fizeram de mim uma menina rica! Será que você pode contar isso ao Julio, quando encontrar com ele? Digo isso sempre para o Monteiro Lobato, mas acho que se você puder contar pessoalmente, ele vai entender melhor. Você me faz esse favor? Quantas lembranças boas eu tenho de você! Uma vez eu te encontrei pessoalmente, chegando de táxi à ECA, de onde eu estava saindo nem sei bem porquê, acho que só para encontrar você, que ia fazer uma palestra ou coisa parecida. Isso faz uns 15 anos, no mínimo. Quando reconheci você naquela senhora sorridente e gorducha, corri para ajudá-la a descer do táxi (acho que não teria feito isso se fosse outra senhora, peça para Jesus que me perdoe por isso, por favor). Você sorriu para mim com suas deliciosas covinhas, olhou dentro dos meus olhos com seus olhinhos vivos e sapecas e logo se agarrou ao meu braço, como se fosse uma tia querida. Eu estava no céu. Acompanhei você até a recepção, descobri não sei como aonde ia ser o tal evento do qual você participaria e levei você até a sala, sempre agarrada no meu braço e conversando um monte de coisinhas. Fui ouvindo aquela sua voz de menina fanhosa, que era uma graça. Entreguei você à moça que a esperava e nos beijamos efusivamente, como se fôssemos grandes amigas. Na verdade, éramos grandes amigas, porque foi assim que você me tratou. Ainda tenho uns livros seus autografados numa Bienal e que você dedicou à Helô, minha filha mais velha, que adorava seus versos traduzidos do russo e do alemão, seus limeriques, suas histórias engraçadas. Quando encontrar com ela, agarre no braço dela como fez comigo e saiam vocês duas, conversando coisinhas. Vai ser como se eu estivesse junto. Não quero viver “cá na terra sempre triste” porque você também se foi. Ao contrário. Fica comigo a sua imagem encantadora de menina-velha, sábia e sapeca, um lindo oxímoro, uma união de opostos, apontando para aquilo que eu quero me tornar quando for velha, sem pretender arremedar sua grandeza, mas somente o seu contentamento. Boa viagem, querida! Um grande beijo da Eli

13 Comentários (+adicionar seu?)

  1. Fabiana
    jun 16, 2013 @ 19:54:10

    Eli!
    Suas palavras para a Tatiana querida tocaram meu coração. Que ela e a Helô de braços dados façam poucas e boas, inspirando as meninas e as velhas que cultivamos em nós.
    Beijos,
    Fabi

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  2. Denise Costa Felipe
    jun 16, 2013 @ 20:04:53

    Um grande beijo, queridas.

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  3. juci
    jun 16, 2013 @ 20:28:56

    Eli, adorei ver(ler) o que escreveu. Hoje entendi um pouquinho o que jesus disse: “quem não se tornar como uma criança, não entrará no Reino dos Céus..”

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  4. cpluemarilia
    jun 16, 2013 @ 20:29:27

    Oi Eli, lembrei que levei meus meninos ao Instituto Moreira Salles, em Higienópolis, quando tinham 5 e 6 anos, para ouvir Tatiana contar histórias. Era um encontro literário: “O escritor por ele mesmo”.
    Os meninos ganharam uma fita K7 onde ela lê 2 histórias de sua autoria: “A operação de tio Onofre” e “Tatu na casca”. Doce lembrança..
    Bjss

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  5. Ana Cris
    jun 16, 2013 @ 20:42:18

    Faço uma retificação no que escrevi no FB depois de ler a sua cartinha: A vovó e a bisa receberam a Tatiana lá não sei onde com bolinho de chuva e chá de nuvem, aquele que a gente põe leite,.. A Helô estava junto, dando pulinhos de alegria, o Monteiro Lobato também, sombrancelhudamente brilhante, em forma de estrela…

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  6. Ivette Catarina Jabour Kairalla
    jun 16, 2013 @ 21:11:23

    “Uma outra história”… ADOREI a iniciativa da autora desta matéria! Tenho lembranças parecidas (apenas nunca cheguei fisicamente perto da Tatiana, como ela), mas sempre tive a Tatiana, o Júlio Gouveia e o Monteiro Lobato colados à mim (na imaginação, é claro). Adorei partilhar e lembrar da poesia “Alma minha gentil que te partiste…” MUITO OBRIGADA por esta imensa alegria. Que Deus os tenha no PARAÍSO. Obrigada Eli. Ivette

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  7. Lourdinha Heredia
    jun 17, 2013 @ 08:25:04

    Nossa, Eli, que momento de inspiração!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Tão leve e tão profundo que até dói lá dentro!

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  8. Marilda Zanirato
    jun 18, 2013 @ 14:17:23

    Eu amo ler seus posts. Sempre tão delicados e profundos no pensar.
    Uma dedicatória de tanta leveza.
    Adoro…beijo
    Mari

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  9. Alê Passarim
    jun 19, 2013 @ 16:57:47

    Olá, cheguei aqui através da Cris (Mulheres em Círculo) e me emocionei com este seu post. Coisa tão linda. Um lindo relato e uma homenagem tão cheia de cores para essa “menina-velha, sábia e sapeca”. :o)
    Coloquei um link para cá em minha postagem de hoje. Namastê.

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  10. Cristiane Marino
    jun 22, 2013 @ 17:47:18

    Eli,, que carta linda….Chorei muito, principalmente no final.
    Ao falar da grandeza e dos encantos da Tatiana, você revelou a beleza da sua própria alma.
    Te admiro ainda mais.
    Bjs querida

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  11. ja
    jun 24, 2013 @ 14:44:48

    Ei menina, que lindo eu também chorei. São reflexões assim que alimentam nessa jornada de fazer alma. Luz sempre.

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